quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Quando o alienista é o único alienado

Gustavo Bernardo Krause (UERJ)


Parto do princípio de que a literatura é uma forma de conhecimento. Em consequência, a teoria da literatura não deixa de ser uma teoria do conhecimento – em outras palavras, uma epistemologia.

Parto do princípio, também, de que todos os discursos são fundamentalmente ficcionais, mas que apenas um deles se assume como tal: o discurso literário. Com isto não se quer dizer que “tudo seja ficção”, quando não haveria qualquer distinção e tudo poderia ser igualmente realidade, inclusive o que não o é.

Há a realidade e há a ficção, sim, e uma não se confunde com a outra. O que digo é que não temos e não podemos ter acesso pleno à realidade através da linguagem, mas apenas acesso aproximativo, através, por exemplo, de hipóteses e metáforas. Se aceitamos esta afirmativa mesmo que parcialmente, precisaremos concordar que todo discurso é em alguma medida ficcional.

O discurso da ficção stricto sensu, no entanto, distingue-se dos demais por assumir, mais, por ostentar sua condição ficcional. Desse modo, ele como que põe sob suspeita os demais discursos, suspendendo nosso juízo sobre as coisas. A ficção realiza, algumas vezes malgrado a pretensão realista do autor, uma verdadeira epoché cética. Esta constatação me fez defender há algum tempo que a ficção é na essência cética (Krause, 2004).


No caso de Joaquim Maria Machado de Assis, de quem me dedico no presente texto a comentar a novela O alienista, a constatação toma foros de tautologia, quer pela circunstância de o ceticismo filosófico atravessar toda a sua obra, quer pelo seu combate explícito a toda forma de realismo. Claro, este combate ao realismo foi recalcado, eu diria criminosamente recalcado, pelos nossos livros didáticos, que lhe atribuem exatamente o realismo que ele tanto criticou, como procurei demonstrar em trabalho mais recente (Krause, 2010).

O “herói” de O alienista é um médico chamado Simão Bacamarte. Em recente adaptação para os quadrinhos da novela, os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá o desenharam sisudo e longilíneo, como um Quixote da ciência, mas contando com o pano de fundo de um cérebro gigantesco (Moon, 2007: 15).
http://www.universohq.com/quadrinhos/2007/n18042007_08.cfm


No parágrafo anterior, chamamo-lo de herói-entre-aspas porque na verdade não há heróis, principalmente masculinos, entre os protagonistas e os narradores de Machado de Assis: o autor sempre dá um jeito de colocá-los entre aspas para nos fazer suspeitar da sua heroicidade, por extensão, da nossa própria heroicidade de leitores. Quando críticos de pouco siso reclamaram da inexistência de heróis negros na literatura de Machado de Assis para melhor acusá-lo de “vendido ao sistema” ou algo assim, não perceberam que também não há heróis brancos nas suas histórias, quer dizer: não há quaisquer heróis.

O nome do nosso “herói” já mostra a maneira como seu autor o trata: o prenome alude ao epíteto com que tantas vezes designamos um macaco de estimação (lembrando, não por acaso, a teoria da evolução e seleção natural de Charles Darwin) enquanto o sobrenome é claramente bélico (aludindo à revolução “pela culatra” que o personagem promove na ciência), embora algo anacrônico: usavam-se bacamartes como arma desde o século XVI.

A história se passa não na capital do Império mas sim na pequena vila de Itaguaí. Para bom ficcionista, Itaguaí torna-se a miniatura metonímica da civilização e da ciência ocidentais em pleno século da híbris positivista; como diz o doutor, “Itaguaí é o meu universo” (Machado de Assis, 1882: 17).

Nesse universo, encontramos o ilustre doutor Simão Bacamarte fundando o asilo da Casa Verde a fim de demarcar os limites da razão e da loucura. A Câmara Municipal de Itaguaí o autoriza a encerrar na Casa qualquer habitante que não corresponda ao critério estabelecido pelo próprio médico para a saúde mental: “a razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia” (Machado de Assis, 1882: 29).

A experiência, porém, transforma-se numa tragédia para a comunidade: quatro quintos de seus membros são trancafiados na Casa Verde. A insatisfação surda da comunidade encontra no barbeiro Porfírio o seu paladino, que logo vê no caso a oportunidade de se destacar e tomar o poder na pequena vila.

Depois de um combate entre as forças populares de Porfírio e as forças oficiais, deixando onze mortos e vinte e cinco feridos, Porfírio toma de fato o poder. Mas, contrariamente à expectativa, não ordena a demolição da Casa Verde, ao contrário, convida o cientista a ser seu aliado.

A mudança de posição não comove Simão, que logo diagnostica o barbeiro também como louco. Aproveitando-se de outros quiproquós da política municipal, o alienista interna o barbeiro, seus amigos, e depois até mesmo a sua própria esposa, dona Evarista.

É quando ele se pergunta: será que a maioria absoluta da humanidade é louca?. Revendo seus conceitos à luz dos novos fatos, o doutor Bacamarte então modifica o critério para a saúde mental, na verdade o inverte completamente: passa a admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades. Em consequência, tornam-se patológicos todos os casos em que aquele equilíbrio se mostra ininterrupto. Os internos são libertados e ele passa a encarcerar os melhores da cidade, ou seja, as pessoas mais equilibradas e razoáveis.

Mas, como mesmo estes demonstram algum desequilíbrio em algum momento, parece restar apenas uma pessoa em toda a cidade que satisfaz o novo critério para a loucura: o próprio Simão Bacamarte. Em nome do seu rigor científico – ou, dizendo de outra maneira, em nome da sua neurose obsessiva –, o ilustre médico interna a si mesmo no seu asilo, onde virá a perecer sozinho.

Trata-se de uma reviravolta metaficcional e genial, comparável à do Édipo de Sófocles: se na tragédia grega o personagem procurou tanto o assassino de Laio que no final acabou descobrindo que ele mesmo era o criminoso que tanto procurava, na comédia brasileira o médico queria tanto descobrir a cura definitiva da loucura que ao final interna a si mesmo como o único louco de Itaguaí, quiçá do mundo!

A novela foi publicada pela primeira vez e em partes no periódico A Estação, de outubro de 1881 a março de 1882. Por essa época, o trabalho burocrático do escritor consistia em lidar com assuntos referentes à escravidão, em especial a redação de pareceres sobre a aplicabilidade da Lei do Ventre Livre. Todos os seus pareceres comprovam sua posição ao lado dos escravos, justamente no período em que a campanha abolicionista dava apenas os primeiros passos.


Através de O alienista, a oposição liberdade versus escravidão metaforizava-se na oposição sanidade versus loucura: um par não se explica sem o outro, sob pena de restarem tão-somente clichês românticos. A Casa Verde é sobretudo um espaço de privação da liberdade no qual pessoas são escravizadas em nome dos discutíveis e camaleônicos poderes da ciência e da política. Desse modo, a metáfora cumpre seu destino e diz mais do que a analogia da qual partiu, fazendo ver a estreita relação entre a política e o pensamento vigente.


Seis meses depois da publicação de O alienista, Machado escreve o conto “O espelho”, cujo tema é o questionamento do papel da identidade através da suposta existência de duas almas dentro de uma mesma pessoa – no caso, o personagem Jacobina. O conto “O espelho” não deixa de espelhar O alienista, pela sutileza das observações psicológicas de ambos, observações estas que se podem considerar igualmente sociológicas.


Como Guimarães Rosa mais tarde fará em conto de mesmo título (“sim, são para se ter medo, os espelhos”), Machado representa o espelho como signo e agente de dissociação psíquica que faz tremer o real ao refleti-lo. Jacobina descobre aquelas duas almas dentro de si mesmo quando se percebe solitário logo após a fuga de todos os escravos da fazenda. Jacobina se vê no espelho como uma figura “vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”, e afasta-se do reflexo com medo de enlouquecer.


Na novela e no conto, como em toda a sua obra, Machado discute questões psicológicas, políticas e sociais de maneira enviezada e irônica. A fuga dos escravos realiza não apenas um desejo do autor como põe a nu a identidade dependente da classe patriarcal brasileira: sem seus escravos, é apenas a sombra de uma sombra.


Jacobina já prepara o que viria a ser um dos principais personagens de Machado de Assis: o Conselheiro Aires.


Jacobina não discute nunca, defendendo-se da abstenção ao afirmar que a discussão é a forma polida do instinto da guerra, que “jaz no homem como uma herança bestial”. Instado por amigos a dar alguma opinião, ou ao menos alguma conjectura sobre a natureza da alma, ele retruca que não lhes dá nem uma nem outra, porque ambas podem permitir o dissentimento, que não lhe interessa. Todavia, se o ouvirem calados, ou seja, sem discutir, ele lhes contará o caso da sua vida, para provar a existência de duas almas convivendo dentro de uma única pessoa.


Em termos visuais, o espelho mostra que, onde parece existir um, há dois. Nos termos da linguagem, a metáfora é uma espécie de espelho mostrando que, onde parece haver apenas um significado, há no mínimo outro significado. Assim como a imagem do rosto não é nem o próprio rosto nem igual ao rosto, revelando-se seu avesso, da mesma maneira o significado subjacente à metáfora não é igual ao significado aparente da palavra.


Com o tempo, no entanto, as metáforas se desgastam em catacreses, ocultando novamente o espelhamento transversal que as produzira. Como lembrou o filósofo alemão, as verdades são “ilusões cuja origem está esquecida, metáforas que foram usadas e que perderam a sua força sensível” (Nietzsche, 1873: 69). O desgaste da metáfora ocorre no cotidiano, quando não enxergamos mais os dedos do pé da mesa, mas também na literatura, por conta de sucessivas interpretações que podem acabar por reificar um sentido único para o que, na origem, teria sido plurissignificativo.


Por isso, André Rios reclama que uma das interpretações possíveis de O alienista se tenha tornado quase que oficial, recalcando outros significados possíveis. A interpretação que se tornou tradicional foi a de ver na novela uma crítica ao “despotismo científico”, como diz o próprio barbeiro Porfírio no texto. A partir da crítica a esse despotismo, discutem-se as pretensões totalitárias da medicina e da psiquiatria. Rios vai nos lembrar, porém, que esta interpretação já existe no interior da narrativa e é ali mesmo ridicularizada: “quem lê este conto como uma crítica à psiquiatria está, a princípio, se pondo como aliado do barbeiro e teria de explicar o que o excetua de também estar seguindo o caminho da conivência” (Rios, 2001: 12).


Acrescento à observação de Rios que a interpretação dominante da novela tem ainda outra função: a de tentar não-enxergar Simão Bacamarte como uma metáfora arrasadora dos realistas e do realismo. Apenas não vendo essa metáfora os manuais didáticos podem continuar enquadrando o escritor entre os realistas. Há uma espécie de cegueira voluntária: críticos e professores fingem que não leram O alienista e, ainda, Memórias póstumas de Brás Cubas, romance em que o narrador defunto deixava romantismo e realismo na beira da estrada, na forma da carniça podre de um corcel.


O próprio Machado faz a seguinte afirmativa categórica: “a realidade é boa, o realismo é que não presta para nada” (em Castello, 1969: 34). Alguém que assinou uma afirmativa como esta pode ser chamado, sem má-fé, de “realista”?


Ao invés de criar a máxima ilusão de realidade, o escritor denuncia a ilusão por trás da voz dos diferentes narradores. Essa denúncia, na aparência auto-referente, termina por ricochetear na própria realidade. Deixando sob suspeita o efeito de real tão buscado pela centúria realista, Machado planta no leitor a dúvida sobre o real ele mesmo.


Na novela, o escritor ilude leitor e intérprete, levando-os a seguir o ponto de vista do barbeiro Porfírio, pela ironia demonstrando como seria forte a nossa tendência em seguir Porfírios. Essa tendência é tão forte que sequer a crítica literária abalizada percebe o logro. Rios então suspeita que o tema central da novela não é a loucura mas, sim, a mediocridade: o escritor está a ironizar a mediocridade de seus leitores e críticos.


A partir dessa suspeita, André levanta a hipótese de que o diálogo fundamental de Machado não é com os críticos da ciência e da medicina mas, sim, com Erasmo de Rotterdam e seu Elogio da loucura, onde se lê (1511: 72):

"Dizem os sábios que é um grande mal estar enganado; eu, ao contrário, sustento que não estar é o maior de todos os males. É uma grande extravagância querer fazer consistir a felicidade do homem na realidade das coisas, quando essa realidade depende exclusivamente da opinião que dela se tem. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade."

A hipótese de Rios torna-se ainda mais pertinente se lembramos que Erasmo de Rotterdam é o mentor de ninguém menos que Miguel de Cervantes. O escritor mexicano Carlos Fuentes, não por acaso, considera Machado de Assis o único herdeiro nas três Américas do autor de Dom Quixote, quer pelo seu uso metódico da metaficção, quer pela indistinção que promove entre as categorias da sanidade e da loucura.


Em crônica datada de 1904, Machado pergunta se o Hospício Nacional de Alienados deve ficar com o Estado ou tornar à Santa Casa da Misericórdia. Na resposta, opta por nenhum dos dois, sugerindo que os próprios doidos devem administrar o estabelecimento – poucas sugestões terão sido tão subversivas. Em apoio à sua tese, invoca Erasmo: “O grande Erasmo (ó Deus!) escreveu que andar atrás da fortuna e das distinções é uma espécie de loucura mansa; logo, a instituição, fundada por doudos, deve ir aos doudos – ao menos por experiência... O seu ao seu dono” (em Rios, 2001: 28).


Tomando por estabelecido o diálogo entre Machado e Erasmo, André passa a questionar a tradução do Elogio da loucura – no original latino, Laus stultitiae. A tradução abriga um dos sentidos possíveis, mas se revela insuficiente porque Erasmo não trata da loucura como a vemos, isto é, como doença. Entre as palavras latinas que designam loucura, amentia e dementia são sinônimas, com sentido mais técnico e reservado; insania e stultitia abrigam sentido mais amplo, mas insania se aproxima do uso médico, enquanto stultitia traz também o sentido social de desregramento, excesso, insensatez, vaidade, tolice – numa palavra, mediocridade (Rios, 2001: 14).


Para combater a mediocridade, Machado recorre ao poder da ironia e a disfarça de loucura, deixando-a fluir discretamente por trás do narrador. Simão Bacamarte, o alienista que na verdade é o maior de todos os seus alienados, coroa a longa série de loucos e monomaníacos de Machado de Assis, entre os quais podemos lembrar Rubião, Brás Cubas e ainda Bento Santiago.


O próprio narrador de O alienista não é irônico: trata-se de um escrupuloso pesquisador de crônicas antigas, mas pouco crítico e nada criativo. Em Itaguaí, todos seriam medíocres não pelo fato de a cidade ser provinciana, mas porque o mundo todo é medíocre. De fato, “todas as referências ao mundo para além de Itaguaí só corroboram que o próprio da condição humana, universalmente, é chafurdar em mediocridades” (Rios, 2001: 15).


A novela sobrepõe uma ironia à outra: são vítimas da ironia a medicina, a ciência, a política, a razão, a poesia, o provincianismo, a retórica, os advogados, o evolucionismo, os leitores, as estatísticas, as elites, a historiografia, a função do narrador e a sociedade patriarcal. Suas peripécias, suas reviravoltas, são irônicas.


A sociedade patriarcal, em particular, é atingida desde o início do texto por uma ironia específica que tem passado desapercebida. Com 40 anos, o doutor Bacamarte casa-se com dona Evarista, de 25, nem bonita nem simpática, viúva de um juiz-de-fora, mas que cientificamente, de acordo com o médico-marido, “reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes” (Machado de Assis, 1882: 17).


A primeira pergunta é: como Bacamarte não atina para o fato de que sua consorte já havia sido casada e não tivera filhos? Não seria provável que viesse a tê-los (Rios, 2001: 16). Os critérios científicos são ridicularizados, mostrando-se como eles encobrem duas decisões pré-científicas, ambas patriarcais e geradoras de pelo menos dois equívocos: enquanto se escolhe a mulher pela prole que ela possa dar ao marido, escolhe-se a esposa com critérios estéticos opostos àqueles com os quais se escolheria uma amante – à esposa, cabe tão-somente ter filhos e cuidar deles.


Curiosas hipérboles enfatizam a mediocridade do casal. Se num momento Evarista encontra-se “apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes”, no seguinte ela se mostra completamente estéril; se num momento Bacamarte tenta resolver a esterilidade da esposa recorrendo a escritores árabes e consultando universidades estrangeiras, no seguinte ele resolve tratá-la com a medicação mais irrisória e mais ineficaz possível: a boa e velha carne de porco de Itaguaí.


A segunda pergunta é: por que a maioria dos leitores e comentadores de O alienista parece não perceber esta ironia logo no início da novela? Talvez porque ela se dê ao mesmo tempo de maneira sofisticada e dolorosa, atingindo tanto Bacamarte, que não enxerga o que se encontra na frente dos seus olhos, quanto o leitor, que não enxerga o procedimento de Machado.


O comportamento de Evarista – na verdade toda a obra de Machado de Assis – contesta a estrutura patriarcal que subjaz à ciência. Ainda que sem o querer, Evarista é uma contestadora quando não tem filhos, quando não segue a dieta e quando reclama da pouca atividade sexual do marido. Ela é uma contestadora gastando dinheiro em roupas e joias, ou seja, em futilidades e tolices. A ironia de Machado atinge os dois lados ao mesmo tempo: a tola austeridade do homem de ciência e a não menos tola frivolidade da mulher casada. Não escapa ninguém – nem o narrador, nem o leitor (Rios, 2001: 25).


Kátia Muricy, no ensaio intitulado A razão cética, mostra como a literatura brasileira da centúria realista rende-se com facilidade à medicalização e psicologização da sociedade, apresentando um desfile de histéricas e neuropatas: “em José de Alencar, Júlio Ribeiro e, sobretudo, em Aluísio Azevedo, desfilam personagens histéricas a que se aplicaria a prescrição higienista de casamento receitada pelo médico de O homem à heroína” (Muricy, 1988: 15).


Machado de Assis, entretanto, nada contra a corrente, criticando os mitos que implantam os mecanismos de normalização social: a crença dogmática na ciência e a suposição de um pensamento esclarecido. Muricy considera que “o ceticismo parece ter sido a inflexão necessária para a elaboração da crítica” (Muricy, 1988: 16). Machado, que já dissera que o realismo não presta, vê a própria natureza como “forte, imparcial e cética” (em Castello, 1969: 54).


Seu ceticismo é amargo mas bem humorado, como mostra crônica publicada na Semana Ilustrada em 1872, quando levanta uma etimologia fantasiosa da palavra “medicina” (em Muricy, 1988: 21):

"Conta-se que, no tempo do rei Numa, o corpo médico era composto unicamente de coveiros, regidos por um coveiro-mor, chamado Cina, avô, dizem, da tragédia de Corneille. Adoecia um romano (eterno romano!), iam os coveiros à casa do doente para abrir a sepultura.
— Mediste, Caio? – perguntava o chefe.
— Medi, Cina – respondia o coveiro oficial."

A piada machadiana pinta os médicos como coveiros preocupados antes em medir os mortos futuros – curar seria secundário, quiçá irrelevante. Ironia semelhante fez Voltaire, quando pôs seu personagem Zadig sofrendo de uma flechada recebida próximo ao olho (1748: 7):

"Mandou-se buscar em Mênfis o grande médico Hermes, que veio com numeroso cortejo. Visitou o doente e declarou que perderia o olho; predisse mesmo o dia e a hora em que esse funesto acidente devia acontecer. “Se fosse o olho direito”, disse, “eu o teria curado; mas as feridas do olho esquerdo são incuráveis”. Babilônia inteira, lamentando o destino de Zadig, admirou a profundidade da ciência de Hermes. Dois dias depois o abscesso rebentou por si mesmo; Zadig ficou perfeitamente curado. Hermes escreveu um livro no qual provou que ele não devia ter sarado. Zadig não o leu."

Voltaire é autor prezado por Machado de Assis, como se comprova de passagem do romance Ressurreição. O melancólico Félix é médico, como Hermes, e vai cuidar da personagem Raquel, gravemente enferma. A cena é descrita da seguinte maneira (Machado de Assis, 1872: 105):

"Em sua opinião, Raquel estava irremediavelmente perdida. Não era opinião aérea e infundada; ele podia demonstrá-la com argumentos cabais e irrefutáveis. Demonstrou-o efetivamente, durante vinte minutos, com a justa apreciação dos fatos, os dados seguros da ciência, e uma dialética tão cerrada que era impossível fazer-lhe a menor objeção. Quinze dias depois, entrava Raquel em convalescença."

Hermes e Félix se equivalem, ou melhor, se merecem, assim como a sociedade que os cerca. Um trecho remete diretamente ao outro. Se Babilônia admirou a profundidade da ciência de Hermes, o Rio de Janeiro não ficou atrás: os pais de Raquel, a despeito do prognóstico completamente errado, entendem que Félix é o salvador da filha.


O livro de Hermes, citado por Voltaire, lembra a história daquele naturalista que, ao ser apresentado a um ornitorrinco vivo, afirmou peremptoriamente: “esse animal não existe”. Ou o diretor de uma escola em que trabalhei: preocupado porque, no ano de 1984, quando o Brasil começava a sair da ditadura militar, eu havia adotado nas minhas turmas do ensino médio justamente o romance 1984, de George Orwell, ordenou-me que não adotasse a obra, em função das suas perigosas inferências subversivas.


Sem entrar no mérito da censura, argumentei que o livro já havia sido adotado, que os alunos já o haviam lido e que uma prova a respeito dele já havia sido aplicada e corrigida. Imperturbável, esse diretor consciencioso disse então que eu devia “desadotar” o livro, informando aos alunos que a prova estava cancelada e que eles não haviam lido o livro. Disse-o com toda a calma, como se não fosse absurdo.


Naturalmente, não fiz o que o ilustre professor me pedia e, à época, assumi as consequências. Penso que esse diretor (cujo nome não importa) desejava era reencarnar o Big Brother de Orwell, mas na verdade tornou-se mesmo uma reencarnação viva de Simão Bacamarte.


A loucura do projeto do médico é criticada do avesso pelo narrador de O alienista, quando ele reclama da resistência dos habitantes da vila: eles lhe parecem pouco esclarecidos, porque insinuam à dona Evarista que “a ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma um sintoma de demência” (Machado de Assis, 1882: 19). Fica claro que Machado discorda de seu narrador, como de costume, e antecipa de um século a antipsiquiatria e sua crítica do confinamento de doentes mentais, adequada apenas para, ou piorar o doente, ou tornar doente quem ainda não o fosse.


Machado explicita essa opinião em crônica de 1896, quando os jornais noticiam, ao mesmo tempo, desequilíbrio financeiro no país e uma fuga de loucos do Hospício dos Alienados (em Muricy, 1988: 49):

"Nem sempre é fácil distinguir, neste fim de século, um alienado de um ajuizado; ao contrário, há destes que parecem aqueles, e vice-versa. Tu que me lês podes ser um mentecapto, e talvez rias desta minha lembrança, tanto é a consciência que tens do teu juízo. Também pode ser que o mentecapto seja eu. (...) No bonde, na sala, na rua, onde quer que se me deparasse pessoa disposta a dizer histórias extravagantes e opiniões extraordinárias, era meu costume ouvi-la quieto. Nunca me passou pela cabeça que fosse um demente. Todas as histórias são possíveis, todas as opiniões respeitáveis."

O cronista brinca que, graças à fuga dos marcados como loucos, não pode mais distinguir uns dos outros – logo, o melhor é desconfiar de todos. Como não há “certeza na matéria”, é melhor não se internar ninguém, ou então fazer uma lei que simplesmente decrete o fim da alienação mental. Afinal de contas, o juízo seria tão-somente “uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese”. Ou, como dirá também em Quincas Borba: “nós não temos outra prova do mundo que nos cerca senão a que resulta do reflexo dele em nós” (em Castello, 1969: 68).


Luiz Dantas, em artigo sobre O alienista, observa que a narrativa e o ilustre doutor desenham a loucura através da palavra. Se “o mundo não é senão uma palavra”, ou “the world is but a word”, como já dissera Shakespeare (1600: 736), a loucura nasce da (ou está na) palavra. O ato de nomear a loucura é acompanhado de contínua reflexão sobre o peso ambíguo e escorregadio das palavras: “a palavra, como instrumento de conhecimento, é precária, sinuosa, venal, modelável” (em Ribeiro, 1985: 146).


Não à toa, têm precedência para a internação na Casa Verde aqueles que padecem dos males da retórica. O primeiro a dar entrada no asilo é um rapaz bronco, sim, mas que todos os dias, depois do almoço, faz um discurso acadêmico ornado de tropos, antíteses e apóstrofes. Qualquer semelhança irônica com professores, críticos e deputados baianos não será, decerto, mera coincidência.


Segue-se ao rapaz bronco o eloquente cidadão que resolve elogiar a mulher do alienista, dizendo que “Deus quis vencer a Deus” (Machado de Assis, 1882: 36). O homem é imediatamente internado; o leitor suspeita de ciúme, sem perceber que o médico teria poucos motivos para tanto. Na verdade, o elogio foi excessivo. A hipérbole é punida, ainda que a narrativa oscile entre aquelas hipérboles contraditórias.


Há vários outros casos de demência verbal, como mostra o discurso esquizofrênico do barbeiro Porfírio. A palavra se mostra, ao mesmo tempo, todo-poderosa e precária. A experiência de Simão Bacamarte, no fundamental uma experiência com a palavra, termina com seu próprio isolamento e morte na Casa Verde.


Como lembra Luiz Dantas, o psiquiatra “manipula e sofre os efeitos dessa palavra servil e traiçoeira. Prisioneiro da sua própria formulação, incapaz de atingir os seus objetivos, encontra a solução para tantos dilemas fechando-se só, no silêncio” (em Ribeiro, 1985: 152).


Resta óbvia a postura, simultaneamente cética e irônica, de Machado de Assis.

REFERÊNCIAS
CASTELLO, José Aderaldo (1969). Realidade e ilusão em Machado de Assis. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
FUENTES, Carlos (2001). Machado de La Mancha. México: Fondo de Cultura Económica.
KRAUSE, Gustavo Bernardo (2004). A ficção cética. São Paulo: Annablume.
______ (2010). O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria (1881). Memórias póstumas de Brás Cubas. Belo Horizonte: Garnier, 1988.
______ (1882). Papéis avulsos. Belo Horizonte: Garnier, 1989.
______ (1872). Ressurreição. Belo Horizonte: Garnier, 1988.
MAIA NETO, José Raimundo (1994). Machado de Assis, the Brazilian Pyrrhonian. West Lafayette: Purdue University Press.
MOON, Fábio & BÁ, Gabriel (2007). O Alienista de Machado de Assis: graphic novel. Rio de Janeiro: Agir.
MURICY, Kátia (1988). A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras.
NIETZSCHE, Friedrich (1873). O livro do filósofo. Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias. São Paulo: Moraes, 1987.
RIBEIRO, Renato Janine (org) (1985). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense.
RIOS, André Rangel (2001). Mediocridade e ironia. Rio de Janeiro: Caetés.
ROTTERDAM, Erasmo de (1511). Elogio da loucura. Tradução de Paulo de Oliveira. Bauru: Edipro, 1995.
SHAKESPEARE, William (1600). The illustrated Stratford Shakespeare: All 37 Plays, All 160 Sonnets And Poems. London: Chancellor Press, 1991.
VOLTAIRE. Zadig, ou: do destino (1748). Tradução de Márcia Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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