As citações são feitas a partir do Livro do Desasocego, ed. Jerónimo Pizarro, da responsabilidade Ministério da Cultura, Grupo de Trabalho para o Estudo do Espólio e Edição da Obra Completa de Fernando Pessoa Coordenador: Ivo Castro, EDIÇÃO CRÍTICA DE FERNANDO PESSOA, Série Maior, Volume XII, 2010.
I
Dizer que o sentido de termos como “sensação”, “sentimento” ou “sonho” no corpus pessoano não é o comum e usual pode parecer escusado. Contudo, mesmo o leitor prevenido tende a cair sempre nesse nível de compreensão de cada vez que lê “sensação”, “sentir a sensação”, “sonhar”, “idear”, etc., etc.. A nossa tarefa será assim a de contextualizar filosoficamente o que Bernardo Soares entende por “sensação”. A nossa hipótese interpretativa pressupõe que se trata de um operador heurístico e hermenêutico. Portanto, “as sensações”, “as impressões”, “os sentimentos”, “os sonhos”, embora expressões com origens diferentes, apontam todas elas para um mesmo núcleo fundamental de sentido: acesso à vida no seu acontecer e possibilidade hermenêutica ou interpretativa do próprio aceder ao viver enquanto viver.
Esta tarefa terá de ser realizada em duas frentes. A primeira é a de 1. Identificar e isolar a sensação como conceito temático, ou seja, como objecto ou tema de uma análise filosófica. 2. Compreender a sensação na sua função mais estruturante do acesso à vida, portanto, detectar e analisar a sua possibilidade hermenêutica. Ou seja, perceber o sentido operatório que produz uma tentativa de compreensão da vida.
A segunda tarefa terá de pôr à prova o projecto delineado pela nossa hipótese interpretativa a partir do seu princípio filosófico. Um princípio que enquanto filosófico pode não ser explicitamente arrostado no L. do D., mas constitui-lhe o fio condutor, o ponto de partida, o fim em vista e na verdade a própria possibilidade do acesso à dimensão que possibilita o sentir a vida. Assim, 1. teremos de compreender como todo o sentir de uma sensação enraíza, de todo em todo, num acontecimento de natureza disposicional, é uma determinada cadência, uma vibração acústica. Como veremos toda o sentir da vida pode ser uma “intenção melódica” ou “a monotonia da antecipação”. 2. A determinação da sensação como disposicional, cadência e vibração melódicas, permite uma qualificação do seu próprio acontecer. As sensações têm a sua origem e proveniência numa “ficção” profunda, onde o onírico invade a vigília da realidade e se confunde com ela. Finalmente 3. poderemos perceber o sentido do ser da ficção profunda que produz sensações das mais superficiais e eruptivas até às mais profundas e anónimas radica no facto de a vida humana ser temporalmente crónica. Como se poderá ver, a viagem, as partidas abortadas ou sem chegada, a aurora, a manhã e a Primavera, são metáforas vivas do acontecer cronicamente finito da existência humana. É com esse carácter definitivamente finito que a sensação tem que se ver, é o que ela detecta, descobre e procura analisar. A análise da vida é necessariamente e inexoravelmente uma análise do sentir a sensação da vida.
A sensação é, assim, o mega sensor que eu de cada vez sou – é o que se faz sentir e o que me dá a sentir à escala mundial e na totalidade do tempo todo. Trata-se de uma forma de acesso que excedem o da mera percepção da realidade. Excede e contrapõe-se à realidade em bruto. Torna manifesto como cada um de nós é e diz, de algum modo, como cada um de nós é ou tem para ser. Tal quer dizer que eventualmente não poderemos falar de ter sensações, mas de sentir sensações. Isto é, é como se fossemos tidos pela sensação, como se fossemos apreendidos e compreendidos por elas, como se tratassem de uma atmosfera da qual não saímos, porque é dela mesma que somos feitos. É assim que uma sensação pode irromper, atacar-nos sem expectativa, contra a nossa vontade. Súbita e repentinamente ela está aí a vibrar-nos a cadência do mundo. Sem sabermos por quê ou como, ela acomete-nos, como quem não quer a coisa. Como diz Camões num soneto:
“Que dias há que na alma me tem posto/ um não sei quê, que nasce não sei onde,/ vem não sei como, e dói não sei porquê.”
II
A nossa tarefa é agora a de mostrar num itinerário necessariamente limitado como é que no L. do D., se procede a uma tentativa de execução da análise da vida/existência a partir do núcleo duro da sensação disposicional. Na verdade, como dizemos na nossa língua “dá a sensação que” ou “dá a impressão que” para expressarmos folga na nossa adequação à realidade, como num lance desportivo, ou numa qualquer ilusão aparente, nós conseguimos perceber que é a sensação e a impressão que funcionam como agentes da doação dos conteúdos, seus produtores, ou colaboradores mais importantes e decisivos na constituição de uma dada realidade e na apercepção de um determinado conteúdo apresentado.
T3: 299 [2-62] [1930], p. 291
"Descobri que penso sempre, e atento sempre, a duas coisas no mesmo tempo. Todos, suponho, serão um pouco assim. Há certas impressões tão vagas que só depois, porque nos lembramos delas, sabemos que as tivemos; dessas impressões, creio, se formará uma parte— a parte interna, talvez— da dupla atenção de todos os homens. Sucede comigo que têm igual relevo as duas realidades a que atendo."
A descoberta em causa não é o resultado de uma possibilidade cognitiva e teórica sem mais. Não se trata do culminar de um à procura e de um encaminhamento que identifica uma operação a descobrir e que finalmente foi descoberta. Trata-se do próprio modo como nos encontramos (“todos serão um pouco assim”) o mais das vezes e primariamente, mas de um modo distraído se assim se pode dizer. A descoberta do modo como nos encontramos suspeita precisamente de que o que é o quid da realidade, o carácter objectivo que está disponível para todos e que constitui o seu núcleo duro, a sua comunidade, é, com efeito, fragmentada e estilhaçada pela própria perspectiva que ganha os seus múltiplos aspectos. Aspectos esses que se interpõem entre o que aí está em si e por si e o que nós próprios somos como ponto de vista a perspectivá-los.
O “mesmo tempo” alberga esse duplo carácter do ver o visto ao mesmo tempo, mesmo de que disso não nos apercebamos. Mas esta cisão quase esquizofrénica entre o conteúdo intrínseco do para mim de uma dada impressão e por outro lado o que propriamente corresponde a uma realidade independente da nossa própria existência (o que se imprime), de um “em si” “para mim” é percebida sempre “ex post facto”. Esta “dupla atenção” que se constitui “no mesmo tempo” dada ao ver e ao visto, ou à maneira de sentir e ao que é a realidade sentida, universal como se encontra no humano, permite perceber a operação fundamental que está a ser identificada e analisada no seu isolamento.
A estratégia, contudo, seguida, por motivos de exposição e de aproximação ao conceito operatório, parece abandonar o que se dá num só momento, na contemporaneidade e simultaneidade entre ver e visto. Isto é, a análise da impressão e do conteúdo imprimido não é executada no tempo presente da percepção. A possibilidade desta distinção fenomenológica entre o sentir a sensação e o objecto da sensação é dada pela meditação no carácter de presença com que certas impressões estão como que neutralizadas no momento da sua constituição para que depois mais tarde como que desenterradas da própria vida emergem a nós na eficácia estranha de um passado que subitamente se torna presente e nos prende a si. Nos fixa.
“Há certas impressões tão vagas que só depois, porque nos lembramos delas, sabemos que as tivemos”. O nexo da relação do nosso presente com o passado é dado via lembrança. Mas a lembrança torna presente um conteúdo sentimental que dificilmente era identificado na altura em que estava a ser vivido, mesmo que condicionasse a nossa vida. Quantos momentos passados não tivemos nós, na infância e na juventude, de cuja atmosfera e melodia nos lembramos apenas ulteriormente. E, contudo, não deixamos de perceber que estavam de algum modo a fazer-se sentir presentes. Um dia contudo como que se lembram de nós como que a pairar na atmosfera mais ou menos dissipada, mais ou menos densa, do que foram e como que congelam e se fixam no presente para vermos o que se passou, para percebermos o carácter do nosso jeito e maneira e o que propriamente é a realidade objectiva do que sucedeu. Esses momentos impressivos e essas sensações são trabalhados pela própria vida ao longo do tempo. Momentos felizes que nos trazem tristeza ou melancolia. Momentos difíceis que nos dão orgulho.
"(…) dessas impressões, creio, se formará uma parte— a parte interna, talvez— da dupla atenção de todos os homens."
Que parte interna é esta? Relativamente a que parte externa é ela interna? Como aceder ao fora de nós se é precisamente este em nós, este em mim, mais precisamente, que me constitui? E constitui de tal modo que a impressão se converte em lembrança ou em antecipação. Não o meu quarto que enquanto tal parece intocado no seu em si. Se me dá a sensação que o meu quarto de agora na impressão momentânea do presente é o meu quarto da infância, é porque de algum modo, fui eu que lá fiquei e de lá venho até agora ou eu que agora, adulto, lá vou encontrar-me comigo outro, no outro quarto, que é o mesmo.
§
Aprofundamento da análise e hermenêutica das sensações
Se conseguimos perceber a distinção fenomenológica nos seus traços mais gerais, 1. o carácter de “dupla atenção” dada ao interno e ao fora de mim, 2. a simultaneidade ou contemporaneidade (“no mesmo tempo”) do meu modo de ver e do objecto real que é visto, escute-se: circunstância, situação, conjuntura, ou até mais pormenorizadamente, coisa, objecto, propriedade sensorial bem como 3. se conseguimos perceber o carácter universal constitutivo do humano do seu ser sentimental (“de todos os homens”), importa agora compreender o carácter simplesmente explosivo do que esta diferença ontológica e distinção fenomenológica pode trazer consigo.
O nosso itinerário terá que ver a raiz de todo o sentir como 1. disposicional, na determinação de toda a sensação como melodia, na definição das sensações como 2. ficção profunda, no enraizamento da cadência e vibrações disposicionais e como 3. temporalmente crónicas como se poderá ver na metáfora da viagem, da partida sem chegada, ou das fases do dia e das Estações do ano como metáforas vivas do acontecer cronicamente finito da existência humana.
1.1. Aprofundamento sentimental
T4: 411 [2-14] [1932], p. 407
"Lembro-me de repente de quando era criança, e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu, não sendo consciente, era a vida. Via a manhã e tinha alegria; hoje vejo a manhã e tenho alegria, e fico triste. A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por traz dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é preto e as flores murcham antes de aparecidas. "
O sentir disposicional imprime-se “de repente”. O seu dar-se é o da lembrança. Não se trata de um esforço cognitivo e teórico para nos lembrarmos do evento x, y e z. Não. Trata-se da própria lembrança que assoma e traz até nós quer queiramos quer não um momento de vida, um “quando”, “quando era criança”. A cisão está dada no modo como se reconhece que “via”, mas “hoje não posso ver”. Ou seja, remanesce indelével o conteúdo desse quando, mas como que neutralizado na sua cadência e na sua vibração disposicional. “Hoje” lembro-me do “quando era” mítico da infância de um dado conteúdo, de uma situação: “a manhã raiar sobre a cidade”. Reconhecemos aqui “no mesmo tempo” a “dupla atenção”, reconhecemos aqui a cisão presente, “hoje” e passado “quando era”, percebemos o abismo que dista entre hoje e então. E ainda assim, transportamo-nos “todos nós” até lá.
“O raiar da manhã sobre a cidade” é radicalmente diferente. Então, nesse quando e enquanto, raiava para a vida. A criança é a vida não uma fase da vida humana. Funde-se com o próprio amanhecer e o emaravilhamento dos raios de sol a entrarem pela casa a dentro, vindos do fundo do mundo. A criança não está consciente da diferença entre um eu e um objecto. Tudo é maciço e ela é configurada por tudo no seu todo. Tudo está à escala mundial, tudo é o tempo todo. Agora, hoje, a manhã “raia para mim”. Neste “para mim” está determinado o perfil que cunhamos ao mundo, ao mundo das tarefas, ao sentido das tarefas a realizar no mundo, ao tratar de si. A criança não trata de si, como que vai correndo no fluxo do que lhe sobrevem e a leva nas horas, num pensar que se lhe oferece com todas as disposições a serem a violência do que acontece. O sentido e a orientação ou a direcção da vida de hoje é absolutamente diferente. A nossa agenda é a do que há para fazer. A agenda da criança é a do que há para ser.
1.2
Aprofundemos ainda mais a diferença de dimensão disposicional da manhã de “outrora” relativamente à de “hoje”.
T5: 411 [2-14] [1932], p. 407
"Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança é literária. Manhã, primavera, esperança— estão ligadas em música pela mesma intenção melódica; estão ligadas na alma pela mesma memoria de uma igual intenção. Não: se a mim mesmo observo, como observo à cidade, reconheço que o que tenho que esperar é que este dia acabe, como todos os dias. A razão também vê a aurora. A esperança que pus nela, se a houve, não foi minha; foi a dos homens que vivem a hora que passa, e de quem assumi, sem querer, a forma de entendimento neste momento."
O raiar da manhã de outrora, de quando era criança é determinada no seu quando por um “sinto”. O que sinto ao sentir a manhã não é apenas a qualidade da luz, a hora específica do dia, se acordo tarde ou cedo. A “manhã” é sentida ao mesmo tempo como “uma grande esperança”. Se invertêssemos a frase diríamos: sinto, ao sentir a esperança, uma grande manhã. O conteúdo disposicional está completamente entrelaçado com o conteúdo sensorial. As manhãs são todas iguais, começam a horas diferentes, são todas elas sem dúvida o começo dos dias. Mas as manhãs de quando era criança, de outrora, são esperança, rasgão de futuro por ser, abertura ao porvir. O reconhecimento da esperança literária, que não quero aqui comentar, tem que ver com o conteúdo poético e produtivo desse tempo que me leva a mim nas horas da manhã por diante. É assim que “Manhã, primavera, esperança” “estão ligadas em música pela mesma intenção melódica; estão ligadas na alma pela mesma memoria de uma igual intenção.”
A esperança que está identificada e presente pela dupla atenção projecta-se sobre o sentido da manhã e da primavera. Mas o que a constitui é a “intenção melódica”, a atmosfera peculiar que por estarmos lá metidos dentro, quando tal acontece não nos apercebemos da sua presença constitutiva. A “intenção melódica” define-me e determina-me, tem-me no seu ambiente. Melhor, eu sou a melodia, a atmosfera e o ambiente, sem me perfilar com consciência na cisão entre mim, eu aqui, e a manhã como parte do dia, a Primavera como Estação do ano e a esperança como possibilidade em aberto para mim. Manhã, Primavera e esperança “estão ligadas na alma pela mesma memoria de uma igual intenção”, de uma orientação sempre a nascer e a crescer, de uma direcção sempre com sentido, de um ir por ir por aí além na disposição melódica da alma.
Não assim “se a mim mesmo observo, como observo a cidade”. A observação é radicalmente diferente da sensação, tal como observar mata o sentimento, a sensação abre a possibilidade mais explosiva de acesso ao que é. “Se a mim mesmo me observo”, a aurora e a manhã, a Primavera e a esperança ficam esvaziadas de melodia intencional, esventradas de alma, passam a ser conteúdos objectivos de uma realidade partilhada por todos. Limito a esperança à espera: “Reconheço que o que tenho que esperar é que este dia acabe, como todos”. Reduzo o sentimento à razão: que “também vê a aurora” como momento abstracto do fim da noite para o princípio da manhã quando ela rompe. A esperança da vivência das horas na melodia da alma, na abertura maciça, no acesso total à escala mundial da vida total, passa agora a ser a intermitência difícil de penetrar e de fazer passar do “viver a hora que passa”.
As manhãs, as auroras, as Primaveras e as esperanças não deixam de ser objectivamente as mesmas. E, contudo, o nosso acesso a elas pode ser tão abismalmente diferente que são umas e outras completamente outras.
T6: 411 [2-14] [1932], p. 407
“Sim, outrora eu era daqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrina da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim. Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei. No meu sangue pesa até a memória das paisagens futuras, e a angústia do que terei de ver de novo é uma monotonia antecipada para mim.”
Também “viver a hora que passa” tem a sua cadência, não a intenção melódica da alma, mas a “monotonia antecipada para mim”, mesmo do “novo”. Se, por um lado, parecia haver no outrora uma fusão entre mim e tudo, como se tudo fosse dar a ser experimentado maciçamente, por outro lado, o ganho de consciência de mim, a agudização da capacidade de observação, o reconhecimento da diferença entre a minha consciência de mim e o que está fora dela não levou a uma compreensão de quem sou. Se outrora “eu era daqui”, hoje, sou “estrangeiro”, “hóspede” e “forasteiro”. No processo de alheamento ou de auto alheamento a que conduz a consciência cognitiva e teórica de mim e do que é fora de mim, “cada paisagem, nova para mim que seja” é “peregrina da sua apresentação”. Na compreensão disposicional do que é novo e novidade, vejo o amanhã como “das ewige Gestrige”. A monotonia é a cadência que antecipa precisamente o desenraizamento de mim a mim, o desarraigamento do mundo, a incapacidade de elos de ligação entre mim e mim, entre mim e os outros, entre mim e o mundo.
É neste quadro de alheamento aparentemente inanuável que se pergunta pela natureza qualitativa do vínculo de uma sensação, de um sentimento, que possa não desfazer-me no estranhamento completo, mas que nos possa reconduzir de novo àquela origem de onde provém o “raiar da manhã” e a aurora das auroras. O aprofundamento da sensação da sensação leva a uma cisão de segunda ordem que a domicilia na cadência disposicional da melodia intencional ou, pelo contrário, na monotonia antecipada de mim, em que eu já percorri tudo no seu todo. Cumpre assim procurar investigar um outro nível de aprofundamento em que se compreenda a raiz da cadência vibrante da vida que permite no seu fluxo águas paradas ou então a fluidez da vida.
§
Se a adulteração do momento originário em que somos todos nós vida nos leva à estranheza peregrina da auto-alienação que nos deixa forasteiros dos próprios, dos outros e das paisagens, a experiência aguda da beira da loucura obriga a procura de um vínculo que nos fixe e nos domicilie. É neste sentido que o L. do D. analisa a possibilidade de posse do próprio, a possessão vinculadora oriunda da intenção melódica da alma em que somos os próprios, nos apropriamos verdadeiramente de nós. A despistagem dessa possibilidade é feita em duas frentes com momentos estruturantes diferentes.
1. A primeira procura perceber o carácter possessivo, ou aquisitivo de si, que o amor pode ser. O amor é analisado como possibilidade de posse do a) corpo.
2. A segunda frente procura analisar o carácter genérico do amor como sensação e dá a compreender como é que um ser que é constituído de todo em todo por sensação e sentir não possuirá nunca a priori o que quer que seja, quem quer que seja, nem a si próprio: a possibilidade de posse da alma, a impossibilidade da posse de outrem em si. Porque tudo como veremos é uma sequência de agoras, uma sequência de agoras configurada por um sentido de passagem cujo direcção inexorável é a da irreversibilidade. Isto é, todo o sentir universal, qualquer sensação ínfima que seja, todas as nossas impressões estão englobados por uma estrutura originária a priori de afluxo numa irreversibilidade de escoamento.
T7: 498 [9-37 e 38]
"1. Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? Um corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, inclui-lo em nós… E essa impossibilidade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo, possuímos apenas a nossa sensação dele, e porque, uma vez possuído esse corpo amado tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro-ente, desapareceria…"
A redução do amor ao sentido de posse serve de hipótese hermenêutica. A determinação específica com que aqui nos surge está num campo semântico que abarca o sentido do ter, da ânsia por ter, do querer ter. Portanto, desvia-se de outras interpretações que não cabe aqui analisar desde a compreensão do eros grego até à agápê cristã. Escute-se por exemplo o que diz Agostinho acerca do amor no Sermão 27, 3 da edição de Lambot:
T8: “… quodcumque amas, uis ut sit, nec omnino amas quod cupis ut non sit. ( “eu penso que se amas os teus filhos, queres que eles existam. [O] que quer que ames, queres que exista. E em geral tudo o que não amas desejas que não exista.”)
onde o sentido do amor é claramente o da libertação do outro, a liberdade de si ganha ao fazer o outro encontrar-se consigo.
Aqui, porém, o sentido é nitidamente o de uma agudização do sentido da posse, um querer possuir e ter, um ter seu, um apropriar-se e um assimilar do corpo tanto do próprio como do alheio. “Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, inclui-lo em nós.” Não há dúvida que numa primeira leitura parece estar a falar-se de um ter sexual. É gritante o “carnal”, “a mais feroz e dominadora posse de um corpo”. Uma segunda leitura, contudo, permite identificar o amor/posse do corpo como o nexo genérico da relação de um si com o seu corpo desde o nascimento com e através do crescimento. O amor/posse do corpo é um apego a uma realidade sempre presente como uma sombra de que cuidamos, que adormecemos e acordamos, a quem damos de comer e de beber, que deixamos descansar. Assistimos ao seu escoamento, mutação e perecimento impotentes. A posse do corpo que habitamos é a priori “temporária”, “o nosso próprio corpo passa e se transforma”. Ele não só não é tido em si num único instante porque a sua existência é de toda em toda temporária. O que nós “possuímos” dele é “apenas a nossa sensação dele”. Isto é, o ter do corpo implica sempre uma relação entre nós e ele via uma sensação, um sentir. O carácter transeunte da sensação é “no mesmo tempo” quando lhe “damos atenção” o próprio carácter transeunte do corpo como o mega sensor à escala mundial.
É pelo próprio facto do ser do corpo sem sentir que ele não se tem nunca a si próprio se assim se pode dizer. Mas a sua presença dá-se numa ilusão carnal sempre desfeita, o que vemos na radicalização do sentido da posse e no paroxismo da sensação sensual. É que “uma vez possuído esse corpo amado tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro-ente, desapareceria…”
T9: 498 [9-37 e 38]:
“A posse de um corpo lindo não abraça a beleza, abraça a carne celulada e gordurosa; o beijo não toca na beleza da boca, mas na carne húmida dos lábios perecíveis e mucosos; a própria cópula é um contacto apenas, um contacto esfregado e próximo, mas não uma penetração real, sequer, de um corpo por outro corpo… que possuímos nós? Que possuímos?”
2. A próxima questão incide sobre um outro plano, quase apetece dizer platónico. Se a relação de posse amorosa do corpo é impossível, não apenas porque entre nós e o corpo há um reino intermédio a transfigurar a sua presença, mas também porque está sempre sujeita ao carácter transeunte e temporário do tempo, pergunta-se agora pela segunda ordem constitutiva da sensação, que a configura, a própria alma.
"2. Possuímos a alma?— Ouve-me em silêncio— Nós não a possuímos. Nem a nossa alma é nossa sequer. Como, de resto, possuir uma alma? Entre alma e alma há o abismo de serem alma e alma."
A possibilidade de compreensão desta pergunta e de lhe dar uma resposta plausível é complexa. Mas não estamos completamente em branco para esboçar alguns ensaios interpretativos. A relação de posse entre alma e alma é em sentido estrito a relação complexa entre mim e mim, a relação de compreensão comigo mesmo. Num sentido alargado é a possibilidade de aceder à alma de outrem. A distância é tão abissal e aparentemente intransponível no segundo como paradoxalmente no primeiro caso em que eu tenho que ver comigo. Concentremo-nos apenas nas diferenças já apresentadas para não pulverizar o problema na sua complexidade.
A diferença de relação entre a minha alma com a minha alma tinha sido já apresentada acima quando a respeito do “raiar da manhã” se distinguiram duas possibilidades extremas de lhe acedermos. O senti-la e o observá-la. Ao sentir o raiar da manhã revela-se tal como com a Primavera, esperança. O sentir é uma intenção melódica. Mas a observação permite uma distância que ensurdece ou silencia essa melodia. Eu tenho o reconhecimento das manhãs como a parte do dia que vem depois do romper da aurora e antes da tarde. Nesse sentido eu percepciono puramente um objecto num sentido real, comum e partilhado por todos os humanos.
É na própria observação da alma que observa e reconhece que se tende a possuir com amor e apego a própria alma. Isto é, ao querer ver e observar não já uma paisagem do mundo, mas a própria alma estamos a destruir o seu próprio elemento atmosférico a sua melodia. Eu quero ver-me a ver, eu quero observar-me a observar, eu quero ir até trás do olho e ver-me a ver. Esse momento de tentativa de posse não apenas destrói qualquer possibilidade de escutar a cadência anímica como a cada instante é novo. É agora que eu estou a ver e a observar, mas ao observar o agora reconheço que ele passa e outro agora vem empurrar o agora que agora mesmo estava aí para um passado próximo e o passado próximo é empurrado continuamente para um passado cada vez mais remoto até cair no esquecimento. A observação aparentemente estagnada e fixa da nossa alma, está sujeita à avalanche de um futuro agora que daqui a nada está aí para se tornar presente e mal chega parte e não vem nunca mais.
Nesse sentido vivemos a vida “dos homens que vivem a hora que passa”.
A outra possibilidade de escutarmos a intenção melódica da nossa vida implicaria assim não uma falta de observação e de atenção ou reconhecimento de si, mas o verdadeiro eclodir da dimensão identificada com a infância e o ser da criança que é o próprio acesso a aceder ao fundo do mundo.
"T10: Que possuímos? Que possuímos? Que nos leva a amar? A beleza? E nós possuímo-la amando? A mais feroz e dominadora posse de um corpo o que possui dele? Nem o corpo, nem a alma, nem a beleza sequer. As nossas sensações, ao menos? Ao menos o amor é um meio de nos possuirmos, a nós, nas nossas sensações? É, ao menos, um modo de sonharmos nitidamente, e mais gloriosamente portanto, o sonho de existirmos? E, ao menos, desaparecida a sensação, fica a memória dela connosco sempre, e assim, realmente possuímos. Desenganemo-nos até disto. Nós nem as nossas sensações possuímos. A memoria, afinal, é a sensação do passado… E toda a sensação é uma ilusão."
§
A raiz da sensação e do amor na temporalidade como operador de acesso e constituição de sentido
Vimos já no nosso curto itinerário que o nosso acesso a tudo em geral é universalmente configurado por um sentir que pode degenerar num observar e num reconhecer, num querer ter-se a si fixo e congelado, isento à passagem do tempo. Vimos também como a determinação do amor como posse está acometido dessa doença mortal e que na verdade é de todo em todo temporário, transeunte, passageiro, mesmo até que demorasse a eternidade inteira a passar. Cumpre agora apontar a raiz do problema no seu núcleo duro de um modo necessariamente breve mas o mais vincadamente possível.
O sentido da intenção melódica que se produz no sentir é musical se assim se pode dizer. Cria atmosferas, cadências e vibrações temporais. O elemento temporal é o da sucessão ou o da coexistência de sucessões que num só instante atravessam o universo. A observação do carácter da sucessão permite compreender apenas a repetição e a renovação de cada agora passado num agora recente. Mas a disposição Melódica permite perceber a verdadeira atmosfera que de repente se pode constituir e nos leva nas horas como na infância. O curto-circuito da perspectiva de observação com o sentir Melódico permite perceber a própria dimensão teórica como tendo a sua própria musicalidade: monótona, minimal repetitiva.
T11: 26 [4-80 e 81] [1913]
"Viajei. Julgo inútil explicar-vos que não levei nem meses nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer medida de tempo a viajar. Viajei no tempo é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde o contamos por horas e dias e meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possível medi-lo. É como que mais rápido que o tempo nosso, mas não é mais rápido, nem tão rápido em anos. Perguntais-me em vós, de certo, que sentido têm estas frases; nunca erreis assim. Despedi-vos do erro infantil de perguntar o sentido às coisas e às palavras. Nada tem sentido."
Encontramos aqui como sempre temos encontrado a dupla perspectiva “no mesmo tempo” de um determinado conteúdo, agora temporal. Por um lado um tempo que é organizado por nós em agendas, calendários, horários, que prevê prazos, curtos, longos e médios, o tempo da hora a hora, do dia a dia, dos meses e dos anos. O tempo quantitativo que permite analisar o tempo geológico como o tempo que demora a fazer-se para nos deslocarmos de um sítio para o outro. Este tempo é contado “por horas e dias e meses”.
Por outro lado, pelo contrário identificamos: “o outro lado do tempo”, não o da deslocação espacial, mas o da viagem, esse outro lado do tempo que “não se conta por medida”. Não é possível medi-lo porque é ele todo compacto e maciço todo o tempo na sua totalidade. O que se pode perceber deste tempo é que não repetível, não é reversível, como podemos fazer no espaço ou na representação física dele. Este tempo é na sua estrutura absolutamente irreversível. Todo o tempo na sua totalidade não é uma quantidade, mas uma qualidade. A sua caracterização é simples: positivamente “decorre”, negativamente não tem medida, é desmesurado, é incomensurável: não é “possível medi-lo”. A formulação paradoxal deixa-nos perplexos: “É como que mais rápido que o tempo nosso, mas não é mais rápido, nem tão rápido em anos.”
É este decorrer do outro lado do tempo que engloba e ensopa e tinge a totalidade da vida, a totalidade do universo, a totalidade da eternidade. É este decorrer do tempo que serve de plano de fundo ao mais breve lapso de tempo, à mais temporária das sensações, à mais ínfima das impressões, mas também ao corpo e aos corpos, ao amor de mim e à minha alma, ao amor de outrem e da sua alma e do seu corpo. A totalidade do tempo não é por isso o tempo em cheio e pleno todo ele estagnado por percorrer. A totalidade do tempo interpretado pelo outro lado do tempo é um tempo total porque acabado, antecipado no seu limite, já no seu fim. Um tempo que se constitui por isso mesmo não a crescer, mas a diminuir. O aluvião do tempo é um por vir sempre a escoar.
T12: 357 [2-60] [1931], p. 357
"Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos. […] Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma que há entre o que chamamos vida e o que chamamos morte. Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro. […] O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela."
É neste contexto, no esvaziamento total do sentido da realidade objectiva, enraizada também ela no grande dia da vida que se esboça repetidamente, do princípio ao fim da vida, a possibilidade de cada um de nós se constituir num: 46 [7-5 a 10] Imaginador de sensações, porque “Cada pessoa é apenas o seu sonho de si-próprio” [54], e ao mesmo tempo cada pessoa é [bocados de dramas seus, ibid.], é um “Kaleidoscopio de fragmentadas sequencias” [49], é uma “pompa de sensações demasiado vividas”.
39 [5-5] [post 12-9-1913]:
"Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. Na verdade e no erro, na dor e no bem-estar, sê o teu próprio ser. Soo poderás fazer isso sonhando porque a tua vida-real, a tua vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros. Assim substituirás o sonho à vida e cuidarás apenas em que sonhes com perfeição. Em todos os teus actos da vida-real, desde o de nascer até ao de morrer, tu não ages: és agido; tu não vives: és vivido apenas."
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