quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Tempo e memória: os sentidos internos em Esaú e Jacó de Machado de Assis

João Batista Madeira (UFMS)

Em vista da necessidade de preparar minha participação sobre “A Literatura Brasileira e as Ideias Psicológicas na Segunda Metade do Séc. XIX” acabei por decidir que iria tratar sobre “Os sentidos internos em Esaú e Jacó de Machado de Assis”, em minha modesta contribuição para esta mesa-redonda. Contudo, havia uma dificuldade óbvia. Não sou especialista em literatura e muito menos em Machado de Assis. Havia assim o risco de entrar em um debate em curso já há muito tempo sem conhecer as contribuições anteriores e sem poder beneficiar-me da necessária interlocução de especialistas nas áreas envolvidas em tal debate. Afortunadamente, tive acesso aos trabalhos de Savio Passafaro Peres e Marina Massimi, sobre temas como o caráter da pessoa; memória; inconsciente e até mesmo sobre a abordagem crítica de Machado de Assis frente a algumas pretensões exageradas da psicologia de sua época. Através dos três artigos destes autores ("Representações do Conceito de Inconsciente na Obra de Machado de Assis", de 2004; "O Universal e Singular na Obra de Machado de Assis", também de 2004; e "O Conceito de Memória na Obra de Machado de Assis", de 2008) descobri duas obras extremamente interessantes, a primeira de M. Fantini (org.) sobre literatura e memória em Machado de Assis, publicada em 2008. A segunda de J. L. Jobim (org.), cujo tema é justamente a biblioteca de Machado de Assis, publicada em 2001. Com estas obras como "interlocutores", penso que foi possível assegurar um mínimo de cientificidade à minha abordagem deste tema, escolhido com base na lembrança da leitura feita na juventude, há cerca de um quarto de século, de obras de Machado de Assis como Helena, Esaú e Jacó, Memórias póstumas de Brás Cubas e de contos como "Flor Anônima".

Trata-se, portanto, de um "trabalho em curso", isto é, de primeiros movimentos em uma linha de pesquisa totalmente nova para mim. Tampouco, poderei almejar a conclusões, definitivas ou não, pois se trata de estágio inicial de pesquisa, no qual os problemas surgem e abordagens se insinuam, sem que o conjunto completo das implicações possa ser testado já com o devido rigor. Permito-me a licença de apresentar estas poucas linhas, pois me parecem estar de acordo com o tema geral deste IV Seminário Farias Brito sobre "Filosofia e Cultura: A Literatura como Origem de Questionamento Filosófico na Segunda Metade do Século XIX".

Com os elementos que se pode auferir das obras instigantes apontadas acima, é possível postular a hipótese inicial de que Machado de Assis propõe em Esaú e Jacó uma visão metafísica específica e que demonstra uma abordagem do tempo e, consequentemente, da faculdade da memória, intrinsecamente distintos do tempo e da memória típicos da perspectiva da metafísica aristotélica. Também é possível propor uma análise de Esaú e Jacó a partir de seus hebraísmos. No caso, uma figura de estilo muito comum na literatura hebraica: o quiasmo. Esta última está muito associada a outro elemento típico da literatura hebraica que é o midraxe. Igualmente se pode sugerir que a abordagem do tempo e da memória de Machado de Assis tem relação direta com a visão de tempo e de memória nos textos da Bíblia: o tempo volta-se para o passado como fornecedor do significado e de orientação para a situação presente. Os olhos se voltam para fatos e lugares passados como a horizontes que estão diante da pessoa. O Éden é destino e não um remoto e incerto ponto de partida.

Há aqui a necessidade de desenvolver alguns destes pontos, a título de introdução da problemática a ser abordada. Em primeiro lugar, é necessário frisar que não será possível considerar aqui a questão do ceticismo machadiano, pois ainda que pareça uma hipótese bastante plausível para a análise da obra de Machado de Assis em geral, há outros elementos em Esaú e Jacó que igualmente propiciam questionamento filosófico. O trabalho de Peres e Massimi apontou para o interesse de Machado de Assis por temas relacionados às ideias psicológicas, no caso que interessa aqui, para a faculdade da memória. Na biblioteca de Machado de Assis, conforme está apresentada na obra citada acima (Jobim, J. L. (Org.). 2001), encontram-se obras sobre a metafísica de Aristóteles e sobre a literatura hebraica. Machado de Assis se refere explicitamente a hebraísmos em Esaú e Jacó, cuja menção à frase de Dante "Dico, che quando l'anima mal nata...", permite especular que temas como os sentidos internos são pertinentes para a compreensão geral do romance.

Num contexto de abordagem da memória nos moldes aristotélicos, o contato com a presença de um objeto que tinha causado uma impressão forte no passado ativava a memória e trazia para a consciência o reconhecimento imediato. Se Machado de Assis utilizasse tal abordagem seria possível entender a seguinte passagem de Helena como exemplo exatamente deste ponto:

"Omito mil circunstâncias intermediárias, e as vezes, poucas, em que pude ver minha filha, de passagem e a ocultas. Se o tempo houvesse produzido em mim os seus naturais efeitos, se a natureza não se ajustasse em fazer contraste com a fortuna, conservando-me o vigor e o viço da mocidade, é possível que eu achasse meio de empregar-me no colégio ou nas imediações, a fim de ver mais frequentemente Helena. Mas eu era o mesmo; passado o primeiro abalo, voltaram-me as carnes, voltou-me a cor, e eu era o mesmo que antes de partir para o Rio Grande. Helena podia reconhecer-me;"

O pai biológico de Helena temia que ao se aproximar de sua filha, mesmo tendo-se passado muitos anos, a sua presença física desencadeasse nela a memória e imediatamente ficasse evidente que se tratava de seu verdadeiro pai. Todavia, há outra passagem que não permite a mesma interpretação. Encontra-se no conto "Flor Anônima". Para exemplificar este dificuldade, é necessário citar um trecho do conto:

"Meteu os olhos pela bolsa, não havia carta; havia apenas uma flor seca.
— Que flor é esta?
Descolorida, ressequida, a flor parecia trazer em si um bom par de dúzias de anos. Martinha não distinguia que espécie de flor era; mas fosse qual fosse, o principal era a história. Quem lha deu?
Provavelmente alguns dos autores das cartas, mas qual deles? e como? e quando?
A flor estava tão velha que se desfazia se não houvesse cuidado em lhe tocar.
Pobre flor anônima! Vejam a vantagem de escrever. O escrito traz a assinatura dos amores, dos ciúmes, das esperanças e das lágrimas. A flor não trazia data nem nome. Era uma testemunha que emudeceu. Os próprios sepulcros conservam o nome do pó guardado. Pobre flor anônima![...]
[...]— Há de ser... é... parece que é... É isso mesmo.
Lembrara-se do primeiro namorado que tivera, um bom rapaz de vinte e três anos; contava ela então dezenove.[...]
[...]— Foi o único que deveras gostou de mim, suspirou agora Martinha, olhando para a pobre flor mirrada e anônima.
E, lembrando-se que podia estar casada com ele, feliz, considerada, com filhos — talvez avó — (foi a primeira ocasião em que admitiu esta graduação sem pejo) Martinha concluiu que a culpa era sua, toda sua; queimou todas as cartas e guardou a flor."

No trecho acima, fica claro que o contato com o objeto – a flor anônima – não foi capaz de trazer à memória um fato tão relevante como o de que era a grande prova de que “podia estar casada com ele, feliz, considerada, com filhos”, o que não parece pouca coisa para alguém que lamenta a solidão em que se encontra. Neste caso parece que a memória foi ativada por outro elemento, que não o objeto. Mas para compreender a diferença da faculdade da memória na tradição aristotélica e a abordagem da faculdade da memória neste trecho do conto "Flor Anônima", será interessante observar que está em jogo a mesma “metafísica de Esaú e Jacó”.

Há um trecho logo nas primeiras páginas do romance que diz:

"Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglês, que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da metrópole e do mundo, Natividade e Perpétua conheciam outras partes, além de Botafogo, mas o morro do Castelo, por mais que ouvissem falar dele e da cabocla que lá reinava em 1871, era-lhes tão estranho e remoto como o clube. O íngreme, o desigual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas. Não obstante, continuavam a subir, como se fosse penitência, devagarinho, cara no chão, véu para baixo. A manhã trazia certo movimento; mulheres, homens, crianças que desciam ou subiam, lavadeiras e soldados, algum empregado, algum lojista, algum padre, todos olhavam espantados para elas, que aliás vestiam com grande simplicidade; mas há um donaire que se não perde, e não era vulgar naquelas alturas. A mesma lentidão do andar, comparada à rapidez das outras pessoas, fazia desconfiar que era a primeira vez que ali iam. Uma crioula perguntou a um sargento: 'Você quer ver que elas vão à cabocla?' E ambos pararam a distância, tomados daquele invencível desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a necessidade humana."

Na Metafísica de Aristóteles há a afirmação de que “todos os homens por natureza tendem ao saber” e que prova disto é há “a superioridade da visão relativamente a todos os outros sentidos”.

No trecho citado acima a abordagem de Machado deixa antever que ele propõe uma metafísica diferente da de Aristóteles, pois as pessoas não tendem ao saber em geral, mas lhes basta conhecer uma parte minúscula da cidade em que vivem e, é claro, têm um “invencível desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a necessidade humana”. A metafísica de Machado é, portanto, bem menos "generosa" com a natureza humana e a faculdade de ver que mais interessa é a "clarividência" da cabocla do morro do Castelo. O que a cabocla vê naquele caso é que os gêmeos, filhos de Natividade e do banqueiro Santos tinham tido um desentendimento já no ventre da mãe, mas que seriam "grandes":

"—Brigado? —Brigado, sim, senhora.
—Antes de nascer? —Sim, senhora, pergunto se não teriam brigado no ventre de sua mãe; não se lembra? Natividade, que não tivera a gestação sossegada, respondeu que efetivamente sentira movimentos extraordinários, repetidos, e dores, e insônias... Mas então que era? Brigariam por quê? A cabocla não respondeu. Ergueu-se pouco depois, e andou à volta da mesa, lenta, como sonâmbula, os olhos abertos e fixos; depois entrou a dividi-los novamente entre a mãe e os retratos. Agitava-se agora mais, respirando grosso. Toda ela, cara e braços. ombros e pernas, toda era pouca para arrancar a palavra ao Destino. Enfim, parou, sentou-se exausta, até que se ergueu de salto e foi ter com as duas, tão radiante, os olhos tão vivos e cálidos, que a mãe ficou pendente deles, e não se pôde ter que lhe não pegasse das mãos e lhe perguntasse ansiosa: —Então? Diga, posso ouvir tudo.
Bárbara, cheia de alma e riso, deu um respiro de gosto. A primeira palavra parece que lhe chegou à boca, mas recolheu-se ao coração, virgem dos lábios dela e de alheios ouvidos. Natividade instou pela resposta, que lhe dissesse tudo, sem falta...
—Cousas futuras! murmurou finalmente a cabocla.
—Mas, cousas feias? —Oh! não! não! Cousas bonitas, cousas futuras! —Mas isso não basta: diga-me o resto. Esta senhora é minha irmã e de segredo, mas se é preciso sair, ela sai; eu fico, diga-me a mim só... Serão felizes? —Sim.
—Serão grandes? —Serão grandes, Oh! Grandes! Deus há de dar-lhes muitos benefícios. Eles hão de subir, subir, subir... Brigaram no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É só o que lhe digo. Quanto à qualidade da glória, cousas futuras!"

Contudo, Natividade e Santos passaram o restante do romance tentando obter a confirmação de que a cabocla do morro do Castelo tinha "visto" a verdade. Novamente há dificuldade de pensar esta abordagem em termos da doutrina aristotélica dos sentidos internos.

A abordagem escolástica tradicional postulava uma faculdade chamada aestimativa (esta abordagem teria se iniciado com o filósofo persa Avicena), que seria capaz de antever o dano ou o benefício futuro de determinadas coisas. A ovelha anteveria no aspecto terrível do lobo que ele lhe seria prejudicial, mesmo que jamais tivesse visto um lobo em sua vida. A ovelha também anteveria num carneirinho a amizade que os uniria mesmo que jamais tivesse visto um carneirinho antes. Mas isto não é o que se passa no trecho citado.

Para tornar o quadro ainda mais complexo, há um personagem que consegue antever o benefício futuro. É o irmão das almas, o Nóbrega, que recebeu uma nota de dois mil-réis de Natividade:

" 'Para a missa das almas!' tirou da bolsa uma nota de dous mil-réis, nova em folha, e deitou-a à bacia. A irmã chamou-lhe a atenção para o engano, mas não era engano, era para as almas do purgatório."

Um detalhe igualmente interessante era que mesmo "antevendo" o benefício que ele, Nóbrega, receberia com o bom uso daquela nota, ele não o percebia com toda a clareza:

"Na igreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristão, ouviu uma voz débil como de almas remotas que lhe perguntavam se os dois mil-réis... Os dois mil-réis, dizia outra voz menos débil, eram naturalmente dele, que, em primeiro lugar, também tinha alma, e, em segundo lugar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar tanto vai à igreja ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia das esmolas pequenas. Se minto, não é de intenção.
Em verdade, as palavras não saíram assim articuladas e claras, nem as débeis, nem as menos débeis; todas faziam uma zoeira aos ouvidos da consciência. Traduzi-as em língua falada, a fim de ser entendido das pessoas que me leem; não sei como se poderia transcrever para o papel um rumor surdo e outro menos surdo, um atrás de outro e todos confusos para o fim, até que o segundo ficou só: 'não tirou a nota a ninguém... a dona é que a pôs na bacia por sua mão... também ele era alma'."

A linguagem mental, para os escolásticos, era claramente articulada, uma espécie de Latim mental. O Nóbrega teve a "clarividência" de entender as palavras confusas da maneira correta e, posteriormente, fica-se se sabendo que ele aplicou sabiamente aqueles recursos e que depois até deu uma nota de dois mil-réis de esmola, pensando que talvez até fosse a mesma nota, que quando recebida por ele era nova e ao ser doada por ele era velha.

"Nóbrega meteu a mão no bolso do colete e pegou um níquel, entre dois que lá havia, um de tostão, outro de dois. Pegou o primeiro, mas indo a dar-lho, mudou de ideia; não deu o níquel; disse à velha que esperasse, e entrou mais fundo no corredor. De costas para a rua, introduziu a mão na algibeira das calças e sacou um maço de dinheiro; procurou e achou uma nota de dois mil-réis, não nova, antes velha, tão velha como a mendiga que a recebeu espantada, mas tu sabes que o dinheiro não perde com a velhice.[...]
[...]Mentalmente, olhava para cima ou para baixo, para a direita ou para esquerda, — em todo caso para longe, — e acabou murmurando esta frase, que tanto podia referir-se à nota como à mendiga, mas provavelmente era à nota:
— Talvez fosse a mesma.
Nenhum obséquio, por ínfimo que seja, esquece ao beneficiado. Há exceções. Também há casos em que a memória dos obséquios aflige, persegue e morde, como os mosquitos; mas não é regra. A regra é guardá-los na memória, como as joias nos seus escrínios; comparação justa, porque o obséquio é muita vez alguma joia, que o obsequiado esqueceu de restituir."

Não há dúvidas de que a fina ironia de Machado de Assis impede que se possa tomar sua metafísica com a mesma seriedade e expectativa de precisão com que se toma a metafísica tradicional. O mesmo se aplica à abordagem dos sentidos internos. Entretanto, o ponto que se destaca aqui é o de que a relação entre o objeto, a nota de mil-réis, e o benefício futuro, não é o mesmo que se dá na faculdade aestimativa, visto que a percepção do objeto levava, de certa maneira, ao cálculo do dano ou benefício futuro. Machado de Assis se referia ao episódio da doação da nota ao irmão das almas como “a esmola da felicidade”. A perspectiva é a de que em vista do fato de que o Nóbrega utilizou aquela nota como ponto de partida para a conquista de sua fortuna, pode-se ler todo o episódio como "clarividência da felicidade". O Nóbrega olha para o passado e vê o benefício divino. O fato ocorrido está diante dos olhos, com todos os seus elementos, que devidamente aceitos, ajudam a explicar e a dar sentido ao presente, não como causa e efeito, mas como horizonte para o qual se olha.

A atitude de Santos, o esposo de Natividade, não é da mesma "clarividência". As ações descritas abaixo são de negação do passado. Santos procura impedir com todos os meios que lhe são disponíveis que através dele ou de suas ações alguém veja o seu passado. Porém, sem a seta do tempo voltada para o passado, não há "clarividência" e nem mesmo a repetição frequente daquilo que não era o motivo verdadeiro pode torná-lo benéfico.

"A gente local não falou de outra cousa naquele e nos dias seguintes. Sacristão e vizinhos relembravam o coupé, com orgulho. Era a missa do coupé. As outras missas vieram vindo, todas a pé, algumas de sapato roto, não raras descalças, capinhas velhas, morins estragados, missas de chita ao domingo, missas de tamancos. Tudo voltou ao costume, mas a missa do coupé viveu na memória por muitos meses. Afinal não se falou mais nela; esqueceu como um baile.
Pois o coupé era este mesmo. A missa foi mandada dizer por aquele senhor, cujo nome é Santos, e o defunto era seu parente, ainda que pobre.
Quanto à contradição de que se trata aqui, é de ver que naquele recanto de um larguinho modesto, nenhum conhecido daria com eles, ao passo que eles gozariam o assombro local; tal foi a reflexão de Santos, se pode dar semelhante nome a um movimento interior que leva a gente a fazer antes uma cousa que outra [...]
[...] Santos conservara alguns gestos e modos de dizer dos primeiros anos, tais que o leitor não chamará propriamente familiares, também não é preciso chamar-lhes nada. Perpétua, afeita a eles, acabou sorrindo e dando-lhe parabéns. Já então Natividade os deixara para se ir despir. Santos, meio arrependido da expansão, fez-se sério e conversou da missa e da igreja. Concordou que esta era decrépita e metida a um canto, mas alegou razões espirituais. Que a oração era sempre oração, onde quer que a alma falasse a Deus. Que a missa, a rigor, não precisava estritamente de altar; o rito e o padre bastavam ao sacrifício. Talvez essas razões não fossem propriamente dele, mas ouvidas a alguém, decoradas sem esforço e repetidas com convicção."

O passado se transforma diante dos olhos presentes, porém jamais se desfigura, tornando-se algo que nunca foi. O irmão das almas corretamente vê no fato de ter destinado a nota de dois mil-réis para a construção de sua fortuna pessoal um auxílio divino. Os elementos estavam lá naquele fato passado. Santos finge ver no gesto de encomendar a missa numa igreja onde não o podem reconhecer um gesto de devoção, mas não há correspondência entre o que finge ver e o fato passado, pois a devoção não estava lá. Para Santos, suas justificativas eram razões “decoradas sem esforço”.

O quadro a ser analisado exige que se destaque ainda outro elemento curioso do romance Esaú e Jacó. A certa altura, o narrador fala da gravidez de Natividade e a compara com outro caso famoso. Trata-se do episódio da gravidez de Sara, a esposa de Abraão:

"Eis aí vinha a realidade do sonho de dez anos, uma criatura tirada da coxa de Abraão, como diziam aqueles bons judeus, que a gente queimou mais tarde, e agora empresta generosamente o seu dinheiro às companhias e às nações. Levam juro por ele; mas os hebraísmos são dados de graça. Aquele é desses. Santos, que só conhecia a parte do empréstimo, sentia inconscientemente a do hebraísmo, e deleitava-se com ele."

Em sua obra Tempo e religião: a experiência do homem bíblico, Walter Rehfeld mostra que o tempo na perspectiva hebraica do texto bíblico se desenvolve no contexto de mudança e permanência. A memória é um forte aliado, pois tanto a mudança quanto a permanência pressupõem algo de fixo no início do processo, ou melhor, no ponto onde se fixa a visão, que numa abordagem do tempo linear seria o passado, mas que está adiante na perspectiva de quem parte do presente para compreender quais são os pontos em que se apoiam a mudança e a permanência. A seta parece voltar-se para o passado, onde há a correta perspectiva para apoiar a "clarividência". Mas este não é o único hebraísmo que pode ser utilizado para analisar Esaú e Jacó.

Outro hebraísmo é o midraxe, termo que deriva do hebraico darash, que significa perscrutar, procurar, explicar, investigar. Na literatura rabínica, trata-se de um estudo, um comentário ou uma explicação que atualiza um texto bíblico. O objetivo do midraxe é a aplicação prática do texto ao presente. Assim, um preceito deve ser reafirmado ou um episódio usado, de modo a iluminar e orientar a vida. Não há paralelos do midraxe na literatura grega e latina. Curiosamente, não há neste contexto uma preocupação com a história, ou seja, não se trata de tentativa de registrar rigorosamente acontecimentos passados. Trata-se de colocar uma perspectiva adequada, com a qual o presente se torna compreensível.

Para perceber como o midraxe funciona, basta notar que a literatura hebraica utiliza com frequência o quiasmo, ou seja, a figura de estilo em que palavras ou mesmo frases inteiras são repetidas de tal maneira a tornar um trecho do texto simetricamente correspondente a outro. No caso da ocorrência do quiasmo no interior de um livro específico, o objetivo é estabelecer uma clara unidade entre a narrativa, ou narrativas, que se encontram entre os dois trechos simétricos. E no caso de trechos pertencentes a obras distintas, o paralelismo constitui o midraxe e garante que um texto explique o outro. Todos os episódios de gravidez miraculosa, por exemplo, são paralelos e um auxilia na explicação do outro. Todos os casos de "irmãos gêmeos", de sangue ou de afinidade/profissão, são paralelos e possibilitam completar o quadro para a explicação de cada um deles.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas há duas referências claras à questão do tempo na perspectiva hebraica. A primeira vem logo nas primeiras linhas, onde Machado compara a sua tarefa narrativa com a de “Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco”. Outra passagem é a seguinte:

"—Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos. Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas cousas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dous quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma cousa mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos: reflexões de cérebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma ocasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planícia branca de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta:
—Onde estamos?
—Já passamos o Éden."


Nos dois casos, tempo e memória não seguem a linha reta em direção ao futuro, que a metafísica aristotélica sugere. Moisés não poderia narrar a sua própria morte se o tempo corre em linha reta para o futuro, pois ninguém pode ter memória da própria morte. O tempo que vem depois da morte de uma pessoa, no contexto aristotélico, não pertence mais àquela pessoa. Narrar tal fato seria tarefa de gerações futuras. Da mesma maneira, na outra passagem, há a viagem em direção ao Jardim do Éden como recurso para que o narrador consiga fazer sentido de sua enfermidade e de sua vida.


É obvio que estes elementos não podem ser usados para classificar Machado de Assis como hebreu e nem como cristão devoto. Não é nem mesmo possível decidir se trata-se de abordagem do tempo e da memória de maneira jocosa ou séria. Porém, parece há elementos suficientes para apontar para o fato de que Machado de Assis conhecia estas características da literatura hebraica e que as utilizou em Esaú e Jacó. Na relação de livros de sua biblioteca encontra-se uma obra sobre literatura hebraica e o exposto acima corrobora o fato de que Machado de Assis estudou as características da literatura hebraica com atenção. Também na sua biblioteca há uma obra sobre a metafísica aristotélica, cujos elementos principais são o de atribuir ao ser humano uma natureza que busca o conhecimento e que privilegia a visão, em comparação aos outros sentidos. A metafísica de Machado de Assis difere agudamente da metafísica de Aristóteles. Entretanto, se os personagens e as ideias que Machado apresenta têm que ser tomados pelo seu "valor de face" ou se são expressão do humor sutil e crítico que lhe são próprios, isto é outra discussão, talvez para um artigo futuro.

Obras de Machado de Assis
Esaú e Jacó. Disponível em:
 (http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=204). Acesso em 05 agosto 2010.
"Flor Anônima". Disponível em:
(http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/centenario-de-machado-de-assis/flor-anonima.php). Acesso em 05 agosto 2010.
Helena. Disponível em:
(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/helena.html. Acesso em 05 agosto 2010.
Memórias póstumas de Brás Cubas. Disponível em:
 (http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/cubas.html). Acesso em 05 agosto 2010.

Bibliografia geral
ATTIE FILHO, M. Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena). Porto Alegre: EDIPCRS, 2000.
BLACK, D. L. "Estimation (Wahm) in Avicenna: the Logical and Psychological Dimensions". Dialogue XXXII, 1993, 219-258.
FANTINI, M. (Org.). Crônicas da antiga corte: literatura e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
JOBIM, J. L. (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001.
MADEIRA, J. "Francisco Valles Covarrubias: o Galenismo Renascentista depois de Andreas Vesalius". Veritas, Vol. 54, N. 3 (2009). Disponível em (http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/cubas.html). Acesso em 05 agosto 2010.
PERES, S. P.; MASSIMI, M. “O Conceito de Memória na Obra de Machado de Assis”. Disponível em (http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a15/permas02.htm). Acesso em 05 agosto 2010.
____. “Representações do Conceito de Inconsciente na Obra de Machado de Assis”. Disponível em (http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.html). Acesso em 05 agosto 2010.
____. “O Universal e Singular na Obra de Machado de Assis”. Disponível em (http://www.ip.usp.br/laboratorios/lapa/versaoportugues/2c48a.pdf)
 . Acesso em 05 agosto 2010.
REHFELD, W. Tempo e Religião: a experiência do homem bíblico. (Coleção Estudos: v. 107) São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

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