1. O positivismo e os seus reflexos em Portugal
O positivismo, pela sua importância e implicações, foi ponto de referência padrão do século XIX. Perspectivando a filosofia ou outras vertentes do saber, sob que prisma fosse, sempre a doutrina positivista aparecia ao caminho, fosse para se lhe opor, fosse para a olhar mais ortodoxa ou mais heterodoxamente. O experimentado, o quantitativo, o exacto, pareciam ser a fonte e o critério quase exclusivos de conhecimento.
Na recepção e interpretação do sistema comteano, não encontramos uma ortodoxia linear na realidade do pensamento português. Nem nos denominados principais positivistas portugueses – M. Emídio Garcia (1) , Teófilo Braga, Teixeira Bastos –, se denota uma posição de seguidismo em relação à filosofia do mestre. Mesmo em relação àquele que foi Presidente da primeira experiência democrático-republicana, Amadeu Carvalho Homem (2) , um dos seus principais estudiosos, caracteriza o seu positivismo como muito sui generis, afirmando que não se pode concordar que haja «uma transposição mecânica, quase literal, dos quadros mentais comtianos para a ideação de Teófilo Braga.»
Aliás, quando chegou até nós, o positivismo já tinha uma «história ilustre» no estrangeiro, contando-se entre os seus adeptos muitos dos modernos homens mais notáveis, nas letras e nas ciências, bastante por efeito do papel de Littré. E a sua entrada em Portugal dá-se primeiramente pela via não filosófica, nas Escolas Politécnicas de Lisboa e do Porto, com a divulgação respectivamente pelo Curso de Geometria Analítica e pelo Curso de Mecânica, de Freycinet.
Em Portugal, onde predominava um ambiente de ecletismo, existia um grupo de intelectuais – lembremos o grupo das Conferências Democráticas (1871) – atentíssimo ao pulsar da Europa, onde se assistia ao murchar dessa filosofia eclética e da filosofia metafísica e ao desabrochar da filosofia positivista. Será sobretudo entre a moderna geração portuguesa, na mira de não perdermos o comboio europeu, que a escola de Comte, com as suas novas ideias e o seu novo método, ganhará os principais adeptos. E sabendo-se que o espírito positivo havia ajudado a fortalecer a República em França, isso seria também, pensava-se, via certeira para Portugal, onde a seiva da metafísica ajudava a alimentar o secular sistema monárquico. A par do anticlericalismo, o positivismo era utilizado como arma política.
Igualmente em Portugal se assistirá ao confronto entre diferentes formas de ver e interpretar o mundo, representadas genericamente no binómio metafísica-psitivismo, que vemos centrado, respectivamente, nas figuras cimeiras de Antero de Quental e de Teófilo Braga.
Embora inserido numa geração, a de 70, da segunda metade de oitocentos, que lutava pelos ideais da modernidade em Portugal, o poeta açoriano mantinha aberta a porta que ia para além do factual, ultrapassando a experiência. Como escreve ao pensador Manuel Ferreira Deusdado (1858-1918), já no declinar da sua vida, a metafísica é uma necessidade do espírito: «A metafísica e o espiritualismo só poderão ser destruídos quando ao mesmo tempo forem abolidos a razão e a consciência humanas.»(3)
Por seu lado, Teófilo Braga, um dos maiores pugnadores da doutrina positivista em Portugal, apesar de pertencer também ao mesmo agrupamento proveniente maioritariamente da Universidade de Coimbra, não deixa de apontar a metafísica como o factor originário de nefelibatas, entre os quais inclui o próprio Antero: «A metafísica quando elabora entidades mentais, como Justiça, Consciência, Revolução, separadas de todas as noções concretas, transforma-se insensivelmente em misticismo, e o misticismo leva o iluminado à inanidade da acção; foi o que aconteceu a Antero de Quental.»(4) A responsabilidade maior encontra-a Teófilo nos principais mentores de Antero, Hegel e Proudhon, que classifica de «dois metafísicos atrasados»(5) .
O estudo sobre os principais cultores e difusores da doutrina comtena em Portugal está feito, para o qual muito ajudaram as contribuições de Álvaro Ribeiro(6) e de Fernando Catroga(7) . Razão pela qual não nos deteremos neste ponto. Não sem, contudo, realçarmos o fecundo papel desempenhado pelas revistas O Positivismo (1878-1882), A Era Nova – Revista do Movimento Contemporâneo (1880-1881) e Revista de Estudos Livres (1884-1887), nas quais colaboraram algumas das mais ilustres personalidades da cultura portuguesa do tempo, próximas do ideário positivista, como Teófilo Braga, Manuel Emídio Garcia, Júlio de Matos, Teixeira Bastos, Consiglieri Pedroso, Adolfo Coelho, Basílio Teles, Alexandre da Conceição, Cândido Pinho, etc.
A par da aceitação entre a elite portuguesa, não só do positivismo, como de outras correntes dominantes na Europa, existia, igualmente, uma atitude de oposição, algumas vezes com aproveitamento de alguns aspectos das correntes combatidas. Nesta última tendência, incluem-se precisamente Sampaio Bruno, Cunha Seixas, Domingos Tarroso, Antero de Quental, Oliveira Martins. Da posição de Bruno, daremos eco seguidamente.
2. O lastro do antipositivismo de Sampaio Bruno
Sampaio Bruno, atentíssimo à realidade do pensamento europeu e português, via que o positivismo ia ganhando terreno. Entre nós, entre outros factos, teria certamente conhecimento do que se ia passando no Curso Superior de Letras de Lisboa, após a entrada de Teófilo Braga para o seu corpo docente. Não lhe passaria despercebido o ideário positivista, que estava subjacente ao republicanismo em geral, e, como tal, também presente no movimento republicano português, no qual ele comungava e agia. A par disso, e a confirmá-lo, dá-se o aparecimento, em 1877, da obra de Teófilo Braga, Traços Gerais de Filosofia Positiva: comprovados pelas descobertas científicas modernas.
Bruno, em 1878, na revista portuense O Museu Ilustrado, em cujas páginas, refere ele, como que se estrearam os novos da época(8) , publica o seu longo ensaio «A Propósito do Positivismo (Relance)», onde já expõe as linhas mestras da sua posição perante o positivismo. Embora, já antes, no ano de 1875, apesar dos seus tenros dezoito anos, em carta dirigida ao grande cultor da doutrina positivista em Portugal, Teófilo Braga, confessasse as linhas balizadoras do seu pensamento neste domínio:
«Entendo que o positivismo é, segundo a justa expressão de Luís Büchner na Ciência e Natureza, um sinal característico da época. Não passa, porém, daí, na minha humilde opinião. A sua negação afectada da investigação das causas primeiras torna-me renitente a tal doutrina. Entendo que Darwin não poderia conceber a sua admirável teoria da selecção natural, nem Haeckel a sua aplicação profunda ao homem se fossem positivistas. […] Parece-me incompleta e muito incompleta a doutrina de Comte e quer na metafísica, quer na sociologia parecem-me profundas e justíssimas as respectivas respostas de Vacherot e Pellarin.»(9)
Na linha de Antero de Quental, também Sampaio Bruno refuta que o conhecimento seja apenas o científico. Esse será um dos erros basilares do positivismo: limitar todo o conhecimento à sensação e aos dados dos sentidos.
No mesmo horizonte, reflectia Eça de Queirós, conforme crónica publicada no Rio de Janeiro, em 1893. Para ele, mais atento aos temas da criação literária, um dos problemas do positivismo residia na forma como a imaginação era arredada, levando a que muitos tenham procurado refúgio de abrigo em várias orientações espiritualistas, desde o cristianismo, passando pelo budismo e indo até ao espiritismo. A causa de tudo isto deriva, para Eça, do «modo brutal e rigoroso com que o positivismo científico tratou a imaginação, que é uma tão inseparável e legítima companheira do homem, como a razão.»(10)
3. O sentido do “seu” Brasil Mental
Se Bruno, quer em 1875, quer sobretudo em 1878, já deixara esclarecida a sua posição sobre o positivismo(11) , porque teria necessidade de voltar ao tema, passados vinte anos após o esclarecedor estudo no Museu Ilustrado? Para quem faça a análise diacrónica do seu pensamento, pode parecer despropositado este retomar do assunto. No entanto, Sampaio Bruno, com a sua ligação ao Partido Republicano Português, de orientação positivista, tinha necessidade de mostrar que a sua luta convicta pelos ideais republicanos não implicava necessariamente uma comunhão com o positivismo, como era apanágio dos seus correligionários. Depois, o seu percurso de pensamento levara-o a determinadas ideias, que desejava expor, e que não se coadunavam com os princípios positivistas. O Brasil Mental surge como uma espécie de preparação do terreno – um aviso sobretudo aos seus leitores e admiradores –, para uma nova sementeira filosófica, que irá surgir, primeiro com A Ideia de Deus, e se completará depois com O Encoberto.
No Brasil Mental, tendo como motivo expresso o conhecimento recíproco entre Portugal e o Brasil, a intencionalidade mais profunda parece ser outra. Bruno aproveita o caso de os nossos irmãos brasileiros terem, segundo ele, uma posição demasiado absorvente do positivismo (uma espécie de «catolicismo sem Deus»), para dizer que no Brasil se encontrava um exemplo claro de seguidismo face a um sistema que ele não comungava, não aconselhava e, sobretudo, não era a expressão da concepção antropológica que ele idealizava. Como, também, repudiava a implantação de uma República positivista em Portugal. Em ambos os processos, via Bruno fortes objecções, que muito desvirtuavam o movimento evolucionista por si perscrutado. Embora, diga-se, no patamar do positivismo, a rudeza de ideias contra os intelectuais brasileiros fica bem acima da vertida para os portugueses. A pesar disso, de terras de Vera Cruz esperaria das elites, certamente, ecos favoráveis ao seu sinal. Pelo contrário. Uma das reacções desfavoráveis vem do autor d’Os Sertões, Euclides da Cunha(12) .
O Brasil Mental é uma obra onde Bruno – para além de muitos e diferentes aspectos culturais, que emergem no meio de extensas divagações, como é seu timbre – delineia o caminho para algo que irá aparecer na Ideia de Deus e n'O Encoberto. Para tal, enfrenta algo de muito estimado na época: a ligação do republicanismo ao positivismo, como referimos acima. E achando que o positivismo tinha algo de aproveitável – como, aliás, achava –, realça-o e assume-o. Como igualmente assumia os valores fundamentais do Iluminismo, saídos da Assembleia Constituinte francesa (de que viria a reflectir mais aprofundadamente em O Encoberto). Contudo, na sua crítica geral à doutrina comteana, deixa bem claro que sem a janela da metafísica não se pode entender verdadeiramente o mundo e a sua evolução(13) .
No entanto, como referimos acima, e é anotado por vários estudiosos da obra do pensador portuense, tais como Amorim de Carvalho(14) e António Telmo(15) , o positivismo vai sendo peneirado até ao ponto em que possa conviver com a metafísica.
4. As principais fontes do seu antipositivismo
Sampaio Bruno ancorou-se em fontes diversas, quer quanto ao positivismo, quer quanto ao antipositivismo. Para além do clássico Littré, naquela última vertente, Bruno teve uma verdadeira «cartilha», que foi a obra do saint-simonista e fourierista Charles Pellarin, Essai Critique sur la Philosophie Positive: Lettre a M. É. Littré (De L'Institut)(1864). Em ambos os estudos de Bruno sobre o positivismo, os elogios a esta obra e ao seu autor, cunhado de Littré, são rasgados e frequentes. No primeiro estudo, aparecem expressões como estas: «como muito bem observou Ch. Pellarin»(16) ; «na justa observação de Pellarin»(17) ; «observa com toda a razão Ch. Pellarin»(18) ; «observa com fina ironia Ch. Pellarin»(19) ; «há no livro tão justo de Ch. Pellarin»(20) . N'O Brasil Mental são repetidas algumas destas expressões, acrescentando algumas outras: «contrapõe com muito senso Ch. Pellarin»(21) ; «observa asizadamente Ch. Pellarin»(22) ; «com efeito, existe no volume, mui justo a despeito de vária visionice, de Ch. Pellarin, uma palavra profunda, e é que Augusto Comte se encarregou, ele mesmo, de refutar o seu sistema.»(23) , Mais adiante, a propósito de críticas à doutrina positivista, remata com ênfase que «por nossa banda, timbraremos em concluir a observação de Pellarin»(24) . E para que não restassem dúvidas, passados alguns anos após O Brasil Mental, Bruno volta a enfatizar o relevo que dá a Ch. Pellarin, pois o francês «não exagerou a sua crítica», referindo, neste contexto, que embora a sua obra fosse redigida em forma de carta ao «positivista» É. Littré, este «a seu turno, resultava já um positivista heterodoxo, incurso em responsabilidades de máxima excomunhão.»(25)
5. Dos limites do positivismo à necessidade da metafísica
A estrutura da filosofia comteana, segundo Bruno, tem como alicerce a conhecida lei dos três estados, que Comte toma como necessariamente consecutivos: «Integralmente concebida, a lei fundamental da evolução intelectual consiste na passagem necessária de todas as teorias humanas por três estados sucessivos. O primeiro, teológico, ou fictício, é sempre provisório; o segundo, metafísico, ou abstracto, é puramente transitório; e o terceiro, positivo ou científico, é o único definitivo»(26) .
Bruno, que pauta a orientação das suas críticas ao positivismo pela renúncia decidida daquela teoria, depois de fazer a análise a vários aspectos do positivismo, remata de forma lapidar: «as conclusões [do positivismo] são absurdas. Logo, as premissas o são também»(27) . E, claro, a premissa maior será essa lei dos três estados, que Bruno não se cansa de proclamar como falsa. O que, provado isso, implica imediatamente que o sistema comteano fique abalado.
Já no seu estudo de 1878, Bruno, depois de argumentar circunstanciadamente contra a sucessividade dos estados teológico, metafísico e positivo, e defendendo a sua simultaneidade, conclui: «eis-nos voltados forçosamente pelo decorrer da polémica à negação da lei dos três estados.»(28) Especifica mesmo que o método positivo não é mais do que o «processo seguido nas ciências exactas», conforme já o deixara anotado Charles Pellarin(29) , e que não se chegou só agora à fase positiva, dando, por isso, mais uma vez «em falso» a lei dos três estados(30) . Mais adiante, conclui Sampaio Bruno que esta lei é «falsa, falsíssima» e está «arruinada». Nalguns aspectos, houve mesmo predecessores cujo papel dentro da teoria positivista desvaloriza a importância de Comte: por um lado, a formulação da teoria dos estados já havia tinha um predecessor em Saint-Simon; por outro, em relação ao «movimento da civilização», já antes de Comte essa marcha havia sido traçada pelo «génio de Fourier»(31) .
Quanto à defesa por Comte de que os três estados se sucedem, se substituem, mas não se acumulam, mesmo nas faculdades humanas, Bruno diz mais uma vez que esse é precisamente «o princípio vital do erro de Comte» . A famosa lei dos três estados encontramo-la refutada, por várias vezes, ao longo d'O Brasil Mental, pois o pensador portuense vê-a como a síntese simbólica de toda a filosofia de Comte: «formulou sinteticamente toda a sua teoria, virtualmente contida em seu ulterior desenvolvimento, por meio duma concepção basilar, que tudo abrangeria. É a famosa lei dos três estados: - teológico, metafísico, positivo. [...] Toda a ciência, toda a sociedade, todo o indivíduo estão sujeitos - como a palavra lei o deixa, aliás, entrever - à fatalidade inabalável da tríplice fase.»
Sampaio Bruno não deixa dúvidas do seu repúdio a essa fórmula comteana. Classifica-a de corolário erróneo(34) , de insuficiência manifesta(35) , de imperfeita, inacabada, incompleta, inexacta(36) . Ao longo da sua obra dedicada ao positivismo, o nosso autor vai colocando algumas questões ou críticas a essa teoria, que tinha a pretensão de tudo abranger, expondo exemplos concretos de intelectuais que contrariam essa visão.
Em jeito de convergência dos argumentos contra a lei basilar do positivismo, remata Bruno de forma concisa, embora ainda não em desfecho: «Conclusão: a lei de Comte não é ainda a de que precisamos. Não serve, porque é de menos para medir o que é de mais.»(37) E especificando um pouco, coloca o dedo no âmago dos limites da filosofia positivista: «Para que a lei dos três estados fosse verdadeira (no sentido de: exacta, perfeita, acabada, completa) era preciso o impossível. O complexo das coisas - nele compreendido o homem - é um sistema estático de equilíbrio de infinitos factores, concorrentes, provindo cada de outros, tendo suas causas especiais, e reagindo todos uns sobre os restantes.»(38) Do que, poderia perguntar Bruno, como formar leis ou, melhor, uma lei com tantas variáveis assim?
Segundo Sampaio Bruno, o positivismo deverá ser tomado como um método - no que, já há muito, era adoptado pelas ciências naturais -, pois, como sistema é inaceitável. Ao longo dos seus estudos sobre esta doutrina, vai desfiando uma série de argumentos, que deixam clara a sua posição perante aquele sistema filosófico. São várias e diversas as questões que ele vai colocando ao longo do extenso ensaio d'O Brasil Mental:
Que dizer de um sistema que passou um traço sobre a metafísica e o absoluto, e que tem por alvo purificar a ciência e a filosofia do espírito metafísico?(39)
Como não se vê que a fórmula comteana é unilateral, não percebendo que os fenómenos sociais são interdependentes?(40)
Como não entende o positivismo que, apesar de lhe interessar apenas o como das coisas e não se importar com o porquê(41) , o «homem há-de tentar sempre devassar o mistério que o incita e o irrita»(42) , e que tal é um facto, e a metafísica tem precisamente «por objecto o responder a perguntas reais do espírito»?(43) Se assim não for entendido, como poderemos esboçar uma resposta a perguntas como: «Com efeito, a consciência, a todo o instante sério e alto da vida mental ou moral, nos sugere estas tremendas perguntas: Há Deus? Não há Deus? A alma humana é livre, imortal, responsável? O acto tem uma sanção e qual seja ela?»(44)
Interroga-se ainda Bruno se não poderemos «asseverar que nos é lícito assentar existências pelo raciocínio, desde que se achem presas a dados conhecidos e que somente elas explicam»?(45) E assim sendo, a existência de Deus não poderá «talvez ser determinada rigorosamente pelo raciocínio»?(46)
Em implícita resposta às acusações que lhe eram dirigidas pelos positivistas portugueses, afirma: «Nós não partimos da metafísica para a positividade; mas, pelo contrário, da positividade para a metafísica.»(47) Afinal, Bruno soube ver o que só os antimetafísicos não queriam entender, apesar da evidência, que a metafísica só se pode combater com outra metafísica .(48)
Alvitrando o desmoronamento do positivismo pelo derrube da sua trave-mestra, Bruno debruça-se ainda sobre outras parcelas do sistema comteano como a religião, a questão política e social e a classificação das ciências. Em semelhante horizonte da crítica bruniana ao positivismo se encontram os principais antipositivistas portugueses como Antero de Quental, Oliveira Martins, Cunha Seixas e Domingos Tarroso.
6. Conclusão
6.1. - Há muito que Bruno anunciava um percurso mental próprio. Nas Notas do Exílio (1893), informava que tinha em preparação dois livros: O Brasil artístico e Teoria da evolução portuguesa. Posteriormente, em 1898, n'O Brasil Mental, continua a ser anunciada uma obra sobre a evolução portuguesa. Finalmente, em A Ideia de Deus (1902), o projecto em mente muda o título para O sebastianismo (Estudo duma lenda), que, em 1904, será concretizado no ensaio denominado O Encoberto.
No projecto bruniano, O Brasil Mental deve ser entendido como um elemento, o primeiro, a que terão de se associar as duas obras seguintes. É no âmbito desta trilogia, que O Brasil Mental deve ser submetido à respectiva hermenêutica, tendo em especial atenção a intencionalidade do autor. Assim, se a análise crítica de Euclides da Cunha tinha sentido naquele período temporal, isto é, imediatamente após a edição do livro, em 1898, depois da publicação da referida trilogia filosófica fundamental, essa apreciação fica desfocada. Isto é, se Euclides da Cunha tomou o livro pelo alcance do seu título, a ideia do seu autor seria projectá-lo mais como uma crítica ao positivismo e, assim, como uma espécie de preparação do terreno, para a sementeira filosófica, que viria a seguir.
6.2. - Bruno centra a sua crítica a Auguste Comte em dois aspectos principais: a lei dos três estados e o repúdio comteano da metafísica. Embora tenham sido dedicadas longuíssimas páginas ao primeiro ponto – que tem relação com o segundo –, podemos dizer que no sistema especulativo do portuense era sobretudo a rejeição da metafísica que lhe causava inultrapassável engulho.
Se a fórmula ternária comteana, por ser diacrónica e exclusiva, merecia o repúdio de Bruno, igualmente lhe era inaceitável que a ciência pudesse banir a metafísica. Assim sendo, muitas das questões fundamentais da vida ficavam arredadas de qualquer estudo. E, como ele próprio defendia, banir não é resolver. A hiper-racionalização, tão do agrado da modernidade, não é suficiente para tratar de todos os aspectos, sobretudo os mais enigmáticos, da existência humana. Tem de se ir por outros caminhos, como ele escreve n'A Ideia de Deus: «Não há prova mais cabal de que a simples inteligência, por lucidíssima, é insuficiente. Se a sensibilidade real do coração não lhe assiste, o homem inteligente descai na impura e extrema idiotice.»(49)
A metafísica não deve ser morta e enterrada. Bruno indica o caminho a seguir:
«[…] o nosso grito não deve ser: Morte!, mas: Reforma; não: Proscreva-se a Metafísica, porque não é possível mutilar a alma civilizada, arrancando-lhe a necessidade, facto, imprescritível de curar dos problemas uma vez formulados; - mas sim: Reforme-se a Metafísica […]. Assim atenderemos a necessidade real, visto a metafísica ter por objecto o responder a perguntas reais do espírito.»(50)
«A metafísica é o remorso do homem, da culpa de haver nascido. E, como todo o remorso, não se vai embora, quando o interessado o deseja.
Importuna, fica; dissimula-se em mil disfarces; reaparece sob as características mais diversas e fantasmagóricas.»(51)
Portanto, a metafísica não é entendida qual logomaquia, mas como um saber, uma fonte de verdade, em constante diálogo com a ciência, em que as perguntas reais do espírito não são excluídas.
Notas
1. O próprio Sampaio Bruno nos informa que «Na verdade, o dr. Emídio Garcia foi um positivista não rigorosamente ortodoxo e ele representou em Coimbra o papel simpático de um iniciador.» - em Os Modernos Publicistas Portugueses, Livraria Chardron, Porto, 1906, p. 313.
2. Amadeu Carvalho Homem, A Ideia Republicana em Portugal. O Contributo de Teófilo Braga, Minerva, Coimbra, 1989, p. 132. Como igualmente chega mesmo a advertir que «Pelo que toca à estrutura geral do seu sistema filosófico, é deveras simplista e linear dizer-se que nos encontramos perante o principal cultor e difusor do positivismo em Portugal. As fontes de que se nutriu o seu pensamento são heterogéneas. O seu positivismo é muito sui generis.» (p. 134).
3. Carta de Antero de Quental a Manuel Ferreira Deusdado, datada de 7 de Setembro de 1888, em Antero de Quental, Cartas II – 1881-1891, Organização, introdução e notas de Ana Maria de Almeida Martins, Editorial Comunicação, Lisboa, 1989, p. 901.
4. Teófilo Braga, História das Ideias Republicanas em Portugal, Vega, Lisboa, 1983, p. 95.
5. Cf. Id., Ib., p. 91.
6. Álvaro Ribeiro, Os Positivistas. Subsídios para a História da Filosofia em Portugal, s. e., Lisboa, 1951.
7. Fernando Catroga, «Os Inícios do Positivismo em Portugal. O seu significado político-social», em Revista de História das Ideias, Coimbra, I(1977), pp. 287-394; e «A importância do Positivismo na consolidação da ideologia republicana em Portugal», em Biblos, Coimbra, LIII (1977), pp. 285-327.
8. Cf. Bruno, Os Modernos Publicistas Portugueses, op. cit., p. 305.
9. Carta de Março de 1875, dirigida a Teófilo Braga. Apud Joaquim Domingues, O essencial sobre Sampaio (Bruno), Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2002, pp. 40-41.
10. Eça de Queirós, «Positivismo e Idealismo», em Notas Contemporâneas, Fixação de texto e notas de Helena Cidade Moura, Livros do Brasil, Lisboa, s. d., p. 193. Este pequeno estudo foi publicado originalmente em crónica na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 16-06-1893.
11. O artigo de 1878, pelo seu desenvolvimento e profundidade, não deixa dúvidas sobre esta matéria. No entanto, será já no ano de 1874 - ano em que a publicação da sua Análise da Crença Cristã revela bem o sincretismo dos seus tenros dezassete anos -, que Bruno deixará antever o mote pelo qual viria a pautar a sua crítica ao positivismo. Depois de ter palavras em defesa da metafísica (em resposta a L. Büchner, que a referia como questão insensata), remata Bruno: «Remover a questão não é decifrar a incógnita do problema. O problema fica, pois, sem solução. Pergunta-se: -são, sim ou não, importantíssimos os problemas da existência de Deus e da imortalidade da alma, todos os profundos debates que se agitam sobre o ser, e a possibilidade? A moderna escola positivista, que, sem erro, podemos dizer produz grandes passos para diante e grandes estacionamentos, nega ufanamente o valor da metafísica.» - «"A Metafísica" (A Alguém)», in A Tribuna, Porto, 42(1874), Apud Cruz Malpique, José Pereira de Sampaio (Bruno), obra inédita, depositada na Biblioteca Pública Municipal do Porto, no Espólio do Dr. Cruz Malpique (Caixa 119), Cap. VII.
12. Euclides da Cunha, «O Brasil Mental», em Obra Completa, Vol. I, Edição organizada sob a direcção de Afrânio Coutinho, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995, pp. 441-456. Este estudo sobre O Brasil Mental foi originalmente publicado no Estado de São Paulo, São Paulo, 10, 11 e 12 de Julho de 1898.
13. António Paim entende poder-se «concluir que a crítica de Bruno [ao positivismo] subordina-se ao propósito de restaurar a metafísica de antigo estilo, que repousa na suposição da legitimidade da discussão dos temas que ultrapassam os limites da experiência humana» - António Paim, «Confronto entre a crítica ao positivismo em Sampaio Bruno e Tobias Barreto», em Colóquio Antero de Quental: Dedicado a Sampaio Bruno, Secretaria de Estado da Cultura, Aracaju, 1995, p. 205.
14. Cf. Amorim de Carvalho, O Positivismo Metafísico de Sampaio Bruno, Lisboa, 1960, p. 124. Pela expressão no próprio título da sua obra Positivismo Metafísico, procura Amorim de Carvalho espelhar esta sua ideia. Não discutiremos a eventual inconciliação destes termos na forma como estão associados, embora, contrariamente ao que anota Joel Serrão, que a classifica de aporia (cf. Sampaio Bruno. O Homem e o Pensamento, 2ª ed., Livros Horizonte, Lisboa, 1986, p. 165-nota 7), nos pareça que seja uma tradução feliz da atitude de Bruno perante o positivismo e seus matizes, desde que ao conceito de positivismo não se atribua uma linha de ortodoxia. Não encontrámos idêntica associação daqueles dois termos. No entanto, É. Vacherot publicou uma longuíssima obra dedicada à "metafísica positiva", em três volumes, que Bruno utilizou e possuía na sua biblioteca particular, que tinha por título La Métaphysique et la Science ou Principes de Métaphysique Positive, 3 vols., 2è. éd., s. e., Paris, 1863.
15. Cf. António Telmo, «Prefácio» a Bruno, O Brasil Mental. Esboço Crítico, Lello Editores, Porto, 1997, sobretudo p. 14.
16. Cf. António Telmo, «Prefácio» a Bruno, O Brasil Mental. Esboço Crítico, Lello Editores, Porto, 1997, sobretudo p. 14.
17. Ib., p. 74.
18. Ib., p. 122.
19. Ib., p. 218.
20. Ib., p. 265.
21. Bruno, O Brasil Mental. Esboço Crítico, Livraria Chardron, Porto, 1898, p. 121. Daqui em diante, usaremos a sigla BM, para nos referirmos a esta fonte.
22. Ib., p. 163.
23. Ib., p. 248.
24. Ib., p. 258. Já anteriormente, na página 118, na refutação que estava a fazer à lei dos três estados, refere que Ch. Pellarin já o tinha observado.
25. A Voz Pública, Porto, 4 de Setembro de 1904.
26. Auguste Comte, Système de Politique Positive, vol. III, Librairie Scientifique Industrielle, Paris, 1853, p. 28.
27. BM, p. 257.
28. «A Propósito do Positivismo», art. cit., p. 217.
29. Cf. Charles Pellarin, Essai Critique sur la Philosophie Positive, E. Dentu: Libraire-Editeur, Paris, 1864, p. 83.
30. Cf. «A Propósito do Positivismo», art. cit., p. 218.
31. Cf. Ib., p. 241.
32. BM, p. 221.
33. Ib., p. 110
34. Cf. Ib., p. 118.
35. Cf. Ib., p. 127.
36. Cf. Ib., pp. 148 e 151.
37. BM, p. 135.
38. Ib., pp. 148-149.
39. Cf. Ib., p. 109.
40. Diz Bruno que «parece claro que, dado o homem em progresso - as suas faculdades, as suas aptidões, os seus modos de ver, os seus costumes, a sua família, a sua sociedade, o seu critério, a sua religião se desenvolvem, senão por igual e par a par, em todo o caso conexa e concomitantemente, reagindo umas acções sobre as outras. É teorema, hoje aceite por todas as sociologias, desde a do americano Giddings até à do belga de Greef e ensinado nas escolas como da ciência coisa indiscutível. Chama-se-lhe o teorema da interdependência dos fenómenos sociais.» - Ib., p. 149.
41. Cf. Ib., p. 152.
42. Ib., p. 181.
43. Ib., p. 268.
44. Ib., p. 155.
45. Ib., p. 190.
46. Ib., pp. 190-191.
47. Ib., p. 160.
48. Cf. Ib., p. 240.
49. Sampaio Bruno, A Ideia de Deus, Livraria Chardron, Porto, 1902, p. 49.
50. BM, p. 268.
51. Id., Ib., p. 154.
Bibliografia
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