quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Sentido filosófico no Brasil dos primeiros debates acerca da relação entre mente e corpo

Leonardo Ferreira Almada (UFG)

Elaboradas em meados do século XIX, as obras de Domingos José Gonçalves de Magalhães refletem um espírito vigoroso dedicado a promover a modernização no Brasil. Como evidência disto, há o reconhecimento histórico e literário de que foi ele quem realizou, com a publicação de Suspiros poéticos e saudades (1836), a reforma da literatura brasileira mediante a introdução do romantismo. Mais do que isto, porém, interessa-nos ressaltar dois aspectos de sua obra modernizadora. Um, que diz respeito à ideia de modernização, a saber, que ele foi o primeiro a pensar a necessidade de reformas a partir de nossa própria experiência histórico-cultural; o outro, que diz respeito à tarefa que ele mesmo se propôs em face da tradição filosófica brasileira sob a Ratio Studiorum, a saber: superar, no âmbito de uma educação marcada pela religiosidade, o caráter contemplativo e infecundo do conhecimento de si, sem deixar, entretanto, de reconhecer-lhe a significação transcendente. Deste segundo aspecto, ele trata principalmente em suas obras Fatos do espírito humano (1858) e A alma e o cérebro (1876).
Visando a superar, e por isso mesmo, sem descartar a contemplatividade como um estágio da vida teórica, Magalhães consagra definitivamente no Brasil um sentido de “consciência de si” como inteligência e liberdade no sujeito concreto e histórico. Trata-se da adesão à moderna noção ontológica de liberdade inerente ao cogito cartesiano, o que implica a superação do paradigma da indiferença da vontade que marca o sentido contemplativo de liberdade em face da fé. Assim se caracteriza, no Brasil, a modernização da “ciência” da alma ou espírito como fundamento do modo do ser do homem de ação, e não apenas de contemplação, em que a vontade se revela apenas como indiferença na escolha de um ou outro dos contrários. Essa “consciência e liberdade lhe dão uma individualidade real, a posse de si mesmo, e ele diz eu (...). Por essa consciência individual, e por seus próprios atos, é que ele se julga, e é julgado” (MAGALHÃES 2004, p. 354). Segundo Cerqueira (2003, p.114), “Magalhães é o primeiro brasileiro a assumir atitude teórica em face da filosofia moderna e a partir do aristotelismo constituinte de sua própria tradição”. Trata-se, pois, da substituição do papel da conversão religiosa como origem da autoconsciência por um sentido de consciência de si à luz da razão: “só tem liberdade nesse mundo quem é inteligente; só tem inteligência quem é livre, e obra por si mesmo; e quem tem inteligência e liberdade tem consciência de si mesmo, e é de necessidade um ente moral” (MAGALHÃES 2004, p. 355).
A filosofia brasileira, assim fundada, define sua identidade no cenário da filosofia ocidental exatamente em função desta característica que será a marca axial de seus representantes, a saber: o reconhecimento de que as reformas não implicam a descaracterização da própria ideia de filosofia em sua historicidade. É deste modo que Magalhães, apontando para um sentido intrínseco e real de liberdade, denunciou o abuso da razão na contemplatividade, sempre que da razão fazemos uso ilimitado em vista de nos “sentirmos livres da necessidade mecânica que o nosso próprio corpo e os sentidos do corpo nos impõem por natureza” (MAGALHÃES 2004, p. 355). Se desde a irrupção da filosofia e ciência modernas nada justifica um sentido meramente contemplativo da autoconsciência, por outro lado, todavia, nada também justifica que, em nome dos princípios e conquistas da Revolução Científica, fique asfixiada a significação transcendente da consciência de si.

II. CORPOREIDADE E CONSCIÊNCIA DE SI: A QUESTÃO DA LIBERDADE

É visando a essa conciliação que Magalhães, apoiado no sentido de consciência de si como inteligência e liberdade, erige a tese segundo a qual a corporeidade está a serviço da consciência de si. Assim, quando defende, sobretudo no livro XIII de Fatos do Espírito Humano, a separação entre alma e corpo em vista do conhecimento de si, isso não quer dizer que se assemelha ao modo como na vida contemplativa se estabelece uma separação entre consciência e corporeidade. Afinal, a moralidade depende da sujeição à corporeidade: “só com essa triste condição poderíamos ser entes morais”. Esta “triste condição” aponta exatamente para a compreensão cartesiana de que é o domínio da corporeidade que propicia ao homem a consciência de si como ser finito e dependente em face do ser infinito e independente, isto é, a compreensão de criatura “sujeito a leis necessárias, independentes da nossa vontade” (MAGALHÃES 2004, p. 355). Por outro lado, é no mesmo reino da corporeidade que o indivíduo, revestido de uma vontade muito maior que o entendimento, é capaz de estender a vontade às coisas que não conhece, uma vez que “o corpo não nos foi dado como uma condição de saber e de querer” (MAGALHÃES 2004, p. 355). O que esta “triste condição” nos mostra é que, de um modo ou de outro, toda vida psíquica do indivíduo está fundada na corporeidade, sobretudo porque o corpo nos foi dado “como uma sujeição que coarctasse esse poder livre (o livre arbítrio) de que abusaríamos, chamando-nos à vida prática” (MAGALHÃES 2004, p. 355).
De pleno acordo com Descartes quanto à opinião de que no ser humano a inteligência é muito limitada e a vontade ilimitada, Magalhães, também aqui sem prejuízo de nossas fontes filosóficas sob a Ratio Studiorum, conclui que toda a discordância deriva do concurso da inteligência e do livre arbítrio, “porque bastariam estas duas condições para que cada indivíduo pensasse, discorresse, e quisesse ordenar as coisas a seu jeito (...) e não haveria acordo” (MAGALHÃES 2004, p. 355).
Qual é, pois, o papel exercido pela corporeidade quanto à possibilidade de realizar ações morais? Segundo Magalhães, tal significação se expressa no fato de que tudo o que “convém ao corpo é anunciado pelos apetites e desejos periódicos, que não dependem de cálculo algum, e cuja satisfação natural nos dão prazeres, e pode dar-nos algum mérito, combatendo-os quando desordenados, e tendentes a embrutecer-nos” (MAGALHÃES 2004, p. 362). Em vista da superação do espírito contemplativo, Magalhães enfatiza o papel do corpo animal, enquanto o que limita o poder do saber e do querer absolutos. É pelo corpo que se explica a limitação do poder humano, e é por meio dele que reconhecemos nossa finitude e dependência em face do ser infinito e independente. Em outras palavras, reconhecemo-nos enquanto um ser “sujeito a leis necessárias, independentes da nossa vontade, que demanda imperiosamente a nossa atenção, e involuntariamente se opõe às nossas determinações” (MAGALHÃES 2004, p. 354).
A importância concedida à vida prática é o que nos autoriza afirmar com convicção em que sentido Magalhães propõe a superação da vida contemplativa. Sem dúvida, a capacidade moral de querer as coisas que pela inteligência vislumbramos como certas não se compatibiliza com a vida contemplativa, justamente por envolver a seguinte questão: “como é possível que o ser humano seja capaz de prever pela inteligência a realidade de algo sem assumir, de certo modo, que é também responsável pela sua existência?” (CERQUEIRA 2006, p. 15). No paradigma contemplativo, o sujeito ainda não é capaz de agir sem que, para tanto, nenhuma força exterior o obrigue a tanto. É neste sentido que a fé, para Magalhães, se constitui no mais baixo grau de liberdade.

III. A CONSCIÊNCIA DE SI COMO INTELIGÊNCIA E LIBERDADE

O sentido completo de liberdade, pois, só se realiza no momento em que o indivíduo, impelido pelo peso de alguma razão, seja capaz de aderir de modo irresistível a um dos lados contrários. Com efeito, se há a exigência de superação da indiferença, isso não ocorre senão em virtude do fato de que não há qualquer fator externo que nos obrigue a agir de tal modo. O sentido de consciência de si como inteligência e liberdade relaciona-se com o problema da indiferença na medida em que se eu conhecesse claramente o que é verdadeiro e o que é bom, nunca estaria em dificuldade para deliberar que juízo ou escolha deveria fazer; e assim seria inteiramente livre sem nunca ser indiferente. Desse modo, o erro humano independe de sua natureza, isto é, do fato de termos sido criados por Deus, mas, antes, depende de nossa própria ação ou do uso da liberdade, haja vista que nossa natureza é a mesma quando julgamos quer correta quer incorretamente. O poder humano, diferentemente do de Deus, que é absoluto e livre no mais alto grau, é imensamente limitado. Mas, contrariamente ao que apregoa a frenologia, nenhum argumento fundado na corporeidade e na existência real do fatalismo inviabiliza a liberdade humana.
Assim se compreende em que sentido os propósitos filosóficos de Magalhães se realizam em oposição à redução do indivíduo e dos atos da consciência ao puro mecanismo da corporeidade. Tal é o motivo pelo qual a compreensão da posição de Magalhães depende do seguinte reconhecimento: sua distância de um sentido extrínseco de liberdade implica, na mesma medida, o entendimento de que a liberdade de querer não se incompatibiliza com a necessidade. Ora, a então nascente psicologia experimental — assumindo as mesmas consequências do liberalismo e das acepções de Hume e de Hobbes, que se apoiaram em um sentido meramente extrínseco de liberdade — tornou incompatível a liberdade de querer com a necessidade, na medida em que vinculou a liberdade ao âmbito natural, isto é, como fenômeno da natureza e, portanto, de acordo com a causalidade mecânica a que se reduzem as leis da física. Em Magalhães, porém, a despeito da impossibilidade de definir esse sentido intrínseco de liberdade — inerente à consciência de si — em separado do sentido da necessidade inerente aos fenômenos físicos, a noção que reduz a consciência ao puro mecanismo da corporeidade não se justifica senão enquanto resultante de suposições filosóficas inteiramente equívocas.
De fato, a compreensão de homem a partir de sua sujeição à causalidade mecânica é uma consequência da tese reducionista que, em vista de um eu meramente fenomenal e psicofísico, estabelece o cérebro como origem da alma e fonte única de todos os nossos atos sensíveis, intelectuais e morais. Trata-se de uma concepção de cérebro como órgão da inteligência, consciência e liberdade que engendra a tese naturalista consoante a qual é o cérebro o órgão destinado a produzir pensamento, isto é, a secretar o pensamento do mesmo modo que os outros órgãos secretam humores (MAGALHÃES 1867, p. 22). É em função destes resultados do naturalismo que Magalhães, propondo-se definir o espírito e distingui-lo do que “não é ele nem dele” mediante a separação de alma e corpo, assume o propósito de constituir a delimitação formal de uma orientação a qual vá de encontro aos princípios da tese reducionista: “distinguir-se dele (do corpo) é distinguir-se de tudo”; é pois dele, do seu próprio corpo, que não é ele nem dele, “que o espírito há de se estremar, para conhecer a sua própria natureza, a sua origem e seu destino” (MAGALHÃES 2004, p. 293). É nesse mesmo sentido que se compreendem as afirmações de Magalhães de que “a base e o ponto de partida de todas as ciências filosóficas é a psicologia, da qual elas são ampliações e aplicações”; de que os sucessores de Gall, ao tentarem considerar “o cérebro como órgão multíplice da inteligência”, nada provaram contra a existência de uma alma “indivisível, simples e idêntica”; e, finalmente, de que “a teoria do puro sensualismo não nos explica nem mesmo uma sensação, quanto mais todos os nossos conhecimentos” (MAGALHÃES 2004, p. 108).

IV. ANÁLISE DE MAGALHÃES DA PSICOLOGOA NATURALIZADA: CONCESSÕES E DELIMITAÇÕES

Sem deixar de levar em consideração a exigência de conciliação entre filosofia e ciência, e sem deixar de reconhecer que algumas faculdades da alma dependem do concurso do organismo, especialmente do cérebro enquanto centro do sistema nervoso, Magalhães também não deixa de reconhecer os prejuízos inerentes às consequências filosóficas de uma psicologia aos moldes das ciências naturais. Ora, a completa subordinação das faculdades da alma a funções orgânicas — mediante a distribuição e classificação das faculdades intelectuais e morais pelas diversas circunvoluções do cérebro — é o que justifica a dissolução da crença na identidade pessoal que se revela na consciência, isto é, no âmbito da variedade de seus atos, e na contínua renovação de seus órgãos. Afinal, a redução das faculdades da alma a funções orgânicas elimina a unidade do sujeito atestada pela consciência, isto é, “a mesmidade do sujeito que se revela na consciência” (MAGALHÃES 1867, p. 74). Conforme Magalhães, a supressão da identidade pessoal por meio da ideia de cérebro como órgão da inteligência, da consciência e da liberdade é o resultado de uma confusão cuja origem reside no esquecimento de que o cérebro é simplesmente o bulbo “nutritivo dos nervos e o órgão onde as impressões (...) aumentam a intensidade e duram, a fim de que a vida sensível, sem consciência e sem senhorio de si mesma, possa (...) continuar a sua operação começada” (MAGALHÃES 2004, p.154).
Como procura demonstrar Magalhães, que também era médico, esta confusão da psicofísica e da psicofisiologia tem início em uma má interpretação quanto às relações entre cérebro e pensamento, originada, por sua vez, no fato de que, embora não possamos reduzir o espírito à atividade cerebral, é o cérebro sem dúvida um instrumento do espírito, por nele se concentrar todas as impressões necessárias para as múltiplas sensações, percepções e sentimentos. De fato, todas as impressões são transmitidas pelos nervos ao cérebro, o órgão que conserva e coordena todas as impressões — ações necessárias ao uso da memória — e que estão ou podem estar no cérebro sem que delas tenhamos consciência, como não temos deste órgão material nem de alguma coisa material. Nesse sentido, compreendemos a afirmação de Magalhães consoante a qual “nenhum espiritualista antigo ou moderno pretendeu jamais que não precisa nossa alma neste mundo de olhos para ver e de ouvidos para ouvir”. Pelo contrário, muitos até “consideraram o cérebro em geral como indispensável para o exercício do pensamento; e da existência e necessidade desses e de outros órgãos do corpo não sai triunfante o materialismo” (MAGALHÃES 1867, p. 31).
Sem dúvida, as afecções cerebrais podem alterar a saúde do corpo, modificando e perturbando o tipo normal das impressões, gerando alterações nas sensações correspondentes, bem como nos atos da memória que de tais impressões e sensações dependem. As afecções do cérebro, por isso mesmo, podem gerar certas confusões nos juízos e nas palavras. De certo modo, portanto, o espírito guarda alguma dependência do cérebro, mas da mesma forma que o cérebro depende do coração e do sangue que dele recebe; do mesmo modo que se depende do pulmão para a oxigenação do sangue; e da mesma maneira que todos os órgãos do corpo dependem uns dos outros. Nem por isso, porém, podemos dizer que o cérebro é o produtor da inteligência; de onde se segue que as faculdades mentais são claramente distintas dos órgãos vitais que as exercem como instrumento.
Com efeito, há, além do cérebro, alguma coisa requerida quanto à explicação dessas faculdades. Há uma individualidade idêntica, que “assume e reúne todas essas faculdades como atos seus próprios, e sem a qual nada perceberíamos, ainda que para o exercício de algumas de suas faculdades necessite do concurso do cérebro”. Destarte, ainda que devamos aceitar que o espírito necessite do cérebro como um órgão multíplice “para que se possa exercer e revelar diversas espécies de pensamento e de afecções”, nem por isso devemos aceitar que “se materializam as faculdades intelectuais e morais”. Ora, quanto mais concebemos uma multiplicidade e variedade de instrumentos, mais fica comprovada a “unidade e identidade do ser que deles se serve, por uma lei providencial que ele ignora, e que não precisa conhecer, nem mesmo saber se tais órgãos existem, para que ele possa exercer as faculdades que lhe são próprias” (MAGALHÃES 1867, p. 31).
Para ele, o homem, que também é corpo, é dotado de uma força vital cujo papel consiste em organizar seus órgãos e lhes conferir sensibilidade. Daí devermos admitir que, em verdade, “sirva o cérebro ao espírito como o piano ao artista que nele executa a música que tem na mente” (MAGALHÃES 1867, p. 32). Por isso mesmo, não podemos acatar a hipótese materialista que concebe os atos intelectuais e morais em sincronia com as funções do estômago e do fígado, isto é, enquanto produção material do cérebro. No homem, só o espírito é real, fato cuja evidência reporta à indubitável consciência de sua unidade e identidade. Enquanto a matéria se nos apresenta do ponto de vista da extensão, divisibilidade, inércia e sujeita a mudanças sob a ação de agentes naturais, o espírito, em contrapartida, se nos apresenta como consciente, idêntico a si mesmo, sensível, inteligente e livre, o que torna incompatível qualquer hipótese reducionista e qualquer assimilação metodológica.

"A consciência da unidade e identidade do ser que pensa, sente e quer é um fato indeclinável, e não uma gratuita hipótese metafísica, de que possamos prescindir no estudo da natureza intelectual e moral do homem. Esse fato da consciência obriga tanto os filósofos como o comum dos homens a atribuir todas as nossas faculdades a um princípio simples, a um mesmo sujeito indivisível, a que chamamos alma ou espírito, para distingui-la do princípio substancial dos fenômenos corpóreos, que se nos apresenta como composto de partes e divisível" (MAGALHÃES 1867, p. 8).

Ignorar este fato, como o faz a psicofísica, é reduzir o ser que pensa à suposta substância material; é desprezar, pontua Magalhães, o testemunho indubitável da consciência, para além do qual nada percebemos. A psicologia experimental, assim, perde-se no mundo ‘desvairado’ das hipóteses, ficando em meio a sistemas diferentes e opostos. Reduzindo as faculdades da alma ao mesmo órgão, isto é, ao cérebro, a psicofísica, e mais precisamente a frenologia, apressadamente confere às faculdades da alma o mesmo tratamento que se oferece aos órgãos da vista, do ouvido e do olfato, os quais, ainda que separados entre si, jamais tiveram suas sensações concebidas como produção destes órgãos, de seus complementos cerebrais, ou mesmo como produção de diversas faculdades; antes, as sensações resultantes destes órgãos sempre foram atribuídas ao mesmo órgão, no caso, ao cérebro. A insuficiência da psicofísica e os prejuízos que se seguem daí, pois, não ocorrem senão em função do fato de relegarem a ideia de espírito como substância realmente existente, que pensa e se determina na consciência de sua existência, e cujos atos, pensar e querer estão neles mesmos:

"O corpo, única coisa que percebemos pelos sentidos, se nos apresenta como extenso, divisível, inerte, sujeito a uma contínua mudança pela ação de certos agentes imponderáveis e de certos movimentos, sem os quais a química nada explica. O espírito, ao contrário, se revela a si mesmo, na consciência de seus atos, como simples, idêntico, ativo, sensível, inteligente e livre em suas determinações, elevando-se pela razão ao conhecimento das leis do universo, e do Ser eterno, causa necessária de quem depende" (MAGALHÃES 1867, p. 36).

De fato, se a redução das faculdades da alma a funções cerebrais suprime a unidade e identidade de eu, isso se deve à prévia supressão da inteligência e vontade como seus atributos primordiais e indissociáveis, isto é, ao desconhecimento de que saber já é em si poder, e de que poder é verdadeiramente saber que pode, o que significa, ignorar que saber é inteligência e que poder é vontade livre. E, sem dúvida, a grande consequência da orientação que suprime a unidade e identidade do eu mediante a eliminação da inteligência e vontade como atributos inexoráveis da consciência é a subordinação das faculdades morais e intelectuais às leis do fatalismo.
O equívoco procede, pois, da sinonimização que a psicofísica estabelece entre as faculdades intelectuais e morais em relação às sensações, inclinações e instintos humanos, ou seja, da sinonimização entre o que pertence à consciência subjetiva e o que pertence à contextura fisiológica. Natural, portanto, que Magalhães tenha se insurgido contra a crescente tendência em aplicar os estudos de fisiologia e aprendizagem animais no âmbito do comportamento humano. Tal orientação, afinal, se erige a partir de uma equivocada concepção que a leva a estreitar em demasia os laços que se verificam entre a inteligência e as sensações, a partir da crença de que é possível localizar no cérebro as faculdades intelectuais e morais:

"Essa unidade e identidade do ser moral que pensa é um fato soberano, e indeclinável, que não perde os seus direitos mesmo perante a fisiologia, e protesta, e protestará sempre contra todas as teorias que pretendem anulá-lo. E, como na explicação dos atos de consciência pôr de lado a condição principal, — a unidade e identidade do Eu?" (MAGALHÃES 1867, p. 3).

A fisiologia, em busca de algum elemento ou agente distinto no cérebro ao qual possa atribuir a responsabilidade pelos fenômenos da consciência, permanece incerta e imprecisa, reconhecendo a impossibilidade de se posicionar em relação à natureza da alma, e contentando-se em decretar o espírito como expressão meramente convencional. Limitada ao estudo empírico das funções do cérebro, por reconhecer a impossibilidade de associar a divisão do trabalho do cérebro à divisão da inteligência, a fisiologia permanece imóvel e muda quanto aos fatos que ultrapassam os alcances de suas indagações e experiências. A psicologia, cuja relevância se deve principalmente à capacidade que suas soluções têm de estar na base da solução de outros problemas não menos importantes, reiteradamente comprova sua distância da fisiologia. Prova disso é o fato de que tantos os filósofos quanto os homens comuns sejam levados a atribuir os estados de consciência a um “princípio simples, a um mesmo sujeito indivisível, a que chamamos alma ou espírito”, distinguindo-os, destarte, “do princípio substancial dos fenômenos corpóreos, que se nos apresenta como composto de partes e divisível” (MAGALHÃES 1867, p. 3).
Neste sentido mesmo, o exame das faculdades intelectuais e morais do homem não requer diretamente o conhecimento prévio da natureza substancial do ser que as exerce nem dos órgãos que as sirvam. Afinal, é inteiramente factível o estudo das faculdades da alma a partir do exame da própria consciência, distinguindo-as de todo o resto, e conhecendo a especificidade de cada uma delas e do que resulta de seu conjunto, sem que, para tanto, seja necessário buscar as causas ocultas que as produzem.
Por outro lado, todavia, também é possível o exame dos fenômenos físicos, de suas relações e leis, sem que, para tanto, seja necessário o ingresso na natureza íntima da substância material, isto é, naquela parte que escapa a nossos sentidos e a todos os meios de observação: ainda que sua existência seja inequivocamente admitida e fundamente a crença na existência de uma substância distinta, a que pensa. Com efeito, a psicologia pura permanece reduzida ao estudo dos fatos de que temos consciência, sendo, assim, levada a se calar diante da influência do cérebro e de suas funções, já que o recurso estrito ao uso puro da razão teórica nada lhe revela sobre estes pontos. Em vista da classificação dos atos da consciência, isto é, dos fenômenos de que temos consciência, os psicólogos se propõem elevar às condições ontológicas do ser que as exerce “por um modo tão oculto que escapa à observação” (MAGALHÃES 1867, p. 3). Já os fisiologistas modernos, em vista do estudo do homem em seu complexo orgânico, e tendo em conta alguns fatos poderosos a seu favor, rapidamente assumem como um fato irrefragável que o exercício das faculdades intelectuais e morais em tudo dependem do cérebro. Ora, mas se “não é com os olhos pregados no mundo exterior, com todos os sentidos abertos e atentos aos fenômenos sensíveis, que há de o espírito humano conhecer sua própria natureza, os seus atributos e o seu destino” (MAGALHÃES 2004, p. 293), torna-se forçoso defender que a psicologia moderna, pretensamente fisiológica, reivindica um estatuto de cientificidade que não se justifica. Ainda que já não se cogite mais de um sentido alienante e contemplativo de psicologia — que permaneça indiferente à discussão de como as faculdades da alma se relacionam com o cérebro — também não se cogita mais de uma posição que esteja alheia à necessidade de conciliação entre filosofia e ciência.
Decerto, a variedade dos atos intelectuais e morais, a classificação psicológica das nossas faculdades, a “natureza das nossas ideias tanto sensíveis quanto racionais, as suas diversas associações, a dependência com que todas se apresentam de um só sujeito idêntico e voluntário” constituem elementos que deixam a fisiologia na completa impossibilidade de separar e localizar as faculdades em diversas partes do cérebro, como propunha a frenologia. Não há, ademais, nada que comprove que ao cérebro possamos legitimamente atribuir algum elemento ou agente distinto responsável pelos fenômenos da consciência. Sem embargo, maior clareza haveria quanto ao estudo do próprio ser caso se lhe juntasse a fisiologia do sistema nervoso, haja vista que, se a fisiologia por si só não é capaz de penetrar a consciência em vista de explicar os mistérios do mundo do pensamento, conhecer a que se reduzem as funções dos nervos e a que se reduzem as funções obscuras do cérebro certamente nos induzirá a uma melhor compreensão das nossas faculdades e da potência livre que as exerce. Contra a orientação que desvincula as faculdades da alma da contextura fisiológica, também diz Magalhães: “os vícios de conformação do cérebro, certas relações entre o volume e a configuração desse órgão, com a perfeição das faculdades do espírito, são também provas em favor dessa opinião” (MAGALHÃES 1867, p. 26). Ressalte-se, porém, isso não exclui a própria liberdade como o fato que mais essencialmente caracteriza a consciência. Contra a orientação estritamente materialista, Magalhães enuncia que a psicofísica:

"Encontra completo desmentimento em tudo o que sabemos da matéria, e em nossa própria consciência, que se distingue de tudo o que é material. Se um órgão pudesse pensar e querer, como não saberia ele que exercia esses atos? Se imaginam que o cérebro pode pensar e querer, em saber que é ele que pensa e que quer, do mesmo modo que o estômago digere, e o fígado segrega a biles, sem saber que o fazem, e mesmo se existem; respondo com o fato incontestável que o ser que em nós pensa, sabe que pensa e que existe, e tem consciência de sua simplicidade e identidade; e não se acha no caso do estômago e do fígado e do cérebro que não sabem o que fazem. Por outro lado, o pensamento não é uma matéria transformada, ou segregada, a que se reduzem os produtos de todos os órgãos" (MAGALHÃES 1867, p. 22).

Trata-se, pois, do anúncio o qual preconiza veementemente a necessidade de uma nova orientação em filosofia de acordo com a exigência de conciliação entre filosofia e ciência sem que, para tanto, se reduza o espírito a mero mecanismo ou a faculdades cuja compreensão prescinda da explicação fisiológica. O prejuízo da psicofísica é latente em função de princípios estruturalmente duvidosos. Quando Magalhães pensa na modernização da “ciência” da alma ou espírito, o que implica a conciliação entre filosofia e ciência, isso não ocorre em prejuízo de seu fundamento no modo do ser do homem concreto e histórico, isto é, a liberdade como princípio de ação, e não a vontade indiferente que caracteriza a liberdade sob a égide da contemplatividade.

REFERÊNCIAS

CERQUEIRA, L.A. Filosofia brasileira. Ontogênese da consciência de si. Petrópolis: Vozes, 2002.
____. Farias Brito como Expressão da Identidade Filosófica Brasileira. In: BRITO, Raimundo de Farias. O mundo interior: ensaio sobre os dados gerais da filosofia do espírito. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003.
MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. A alma e o cérebro: estudos de psicologia e fisiologia. Rio de Janeiro: Garnier, 1867.
____. Fatos do espírito humano. Petrópolis: Vozes, 2004.


Um comentário:

  1. Parabenizo imensamente o autor pela grandeza com que comenta aqui o pensamento de Gonçalves de Magalhães, e felicito o Cefib pela benevolência de fazer veicular aqui o textos que nos asseguram um conhecimento mais cuidadoso do pensamento filosófico brasileiro.
    Prof. Dr. Gilfranco Lucena dos Santos, UFRB.

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